A comunidade do vivente na estética contemporânea
- Paula Fleisner
- 5 de mai. de 2024
- 20 min de leitura
Atualizado: 6 de mai. de 2024

Paula Fleisner é Professora Doutora em Filosofia, CONICET/Universidad de Buenos Aires. Publicado originalmente em espanhol, em 2018, este artigo foi traduzido por Nathalia Leter, mestranda em Arte Educação, Instituto de Artes / UNESP. Crédito das imagens: ensaio-performance MÁTER, produzido pelo fotógrafo Stefan Patay com Nathalia L.
Em abril de 2018 perdi minha irmã. Uma vida humana deveria ser lembrada como uma série de eventos isolados, sua vida pessoal? Eu não consigo. Ela sempre está acompanhada por outras pessoas e coisas. Lembro-me da Chunda e do açucareiro de metal que tínhamos na chácara onde passamos nossa infância. É impossível não vê-la, não estar com ela quando uso suas roupas ou vejo os gorros que usava durante a quimioterapia. Os objetos a evocam, assim como os outros seres com os quais compartilhou sua existência. Minha irmã mais nova foi cremada, com todo o horror que não conseguimos evitar no uso final de seu corpo (uso médico e uso funerário que não queríamos fazer, mas que de qualquer forma não pudemos evitar). Suas cinzas agora estão enterradas no mesmo local onde, há um ano, enterramos Frida, sua cadela: debaixo de uma árvore no pequeno jardim da frente de sua casa, uma árvore que sempre teve dificuldade em permanecer viva e resistir aos ventos do sul. Com este texto (e todos os que escreverei daqui em diante), quero aprender a homenagear sua alegre intuição antiespecista.
I. Nunca fomos indivíduos
O paradigma biológico moderno foi, de maneira geral, coerente com a antropologia metafísica, à qual se ofereceu como discurso justificador: o estudo das espécies formadas por exemplares individuais e independentes, interagindo com outros indivíduos da mesma ou de outra espécie em busca de benefício mútuo, correspondia à invenção de um ser humano excepcional e fundamental que ordenava ontológica e moralmente o restante da existência ao seu redor. Um sujeito soberano que confiscava e fiscalizava qualquer possível acesso a uma “natureza" que, em oposição, o refletia; um indivíduo e cidadão de uma cultura-mercado na qual comercializava "livremente". Não é por acaso que o "grande mercado de trocas" seja uma das metáforas usadas para pensar a relação entre as diversas espécies[1], enquanto o modelo de individualidade animal (anatômica, genética, fisiológica, evolutiva, imunológica e de desenvolvimento)[2] foi privilegiado em detrimento da complexidade orgânica das plantas.
No entanto, não apenas a individualidade é uma característica pouco frequente na Terra[3], e a simbiose, por outro lado, parece ser um requisito fundamental para todos os seres vivos, mas os sistemas simbióticos já não são concebidos como autopoiéticos - isto é, como unidades autônomas auto-produtoras com "limites espaço-temporais auto definidos que tendem a ser centralmente controlados, homeostáticos e previsíveis"[4] - mas como simpoiéticos - isto é, sistemas produzidos coletivamente, sem limites espaço-temporais, nos quais a informação e o controle são distribuídos entre seus componentes. Dessa forma, o conceito de "holobionte" tem sido usado dentro e fora das ciências biológicas para repensar a prerrogativa da individualidade. Como um conjunto formado por um organismo multicelular complexo - animal ou planta - e todos os seus microorganismos associados, o holobionte é uma reunião simbiótica em múltiplos pontos no espaço-tempo que, por sua vez, se relaciona com outros sistemas complexos dinâmicos, e não pode ser reduzido às unidades biológicas limitadas supostamente preexistentes (genes, células, organismos, etc.). Portanto, a Terra já não é habitada por indivíduos separados pertencentes a espécies independentes que se relacionam externamente com outros indivíduos de outras espécies; agora encontramos criaturas multi-específicas (compostas por células de diferentes tipos taxonômicos) que se relacionam com outras criaturas de características semelhantes. Como a Mixotricha paradoxa, esse “paradoxo de pelos mesclados” por exemplo, que vive como simbionte no interior do trato digestivo do cupim Mastotermes darwiniensis, facilitando a digestão da celulose que compõe a madeira que o cupim come[5]. Mas não é necessário pensar em criaturas desconhecidas com nomes latinos para entender esse conceito: até mesmo as vacas são holobiontes, pois mantêm uma comunidade simbiótica de microorganismos que vive em seu intestino e possibilita a digestão da pastagem[6]. Portanto, o conceito de uma unidade de vida múltipla e comum (simbiótica), que enfatiza os processos e interações recíprocas entre organismos, começou a substituir as narrativas biológicas individualizantes. Afinal, com os mapeamentos de genomas, sabe-se que todas as espécies de animais e plantas têm pelo menos dois tipos de genomas interagentes, e algumas até cinco ou mais tipos[7]. Não existem mônadas sem janelas, puras e incomunicáveis neste planeta - nem mesmo o Homo sapiens é constituído dessa maneira. "Nunca fomos indivíduos"[8], pois a matéria da qual somos feitos, os seres vivos deste planeta, é uma mistura de milhares de formas de vida que se unem e se separam de diversas maneiras, uma continuidade e comunicação constante de montagens simbióticas em interatividade.
Com as pesquisas relacionadas ao genoma e a sugestão de que a presença da espécie humana no planeta tornou-se geológica (o que será discutido na próxima seção), o discurso biológico começou a mudar da "síntese moderna" para o que a zoóloga M. McFall-Ngai chama de "síntese pós-moderna"[9]. A chamada "síntese moderna" (ou "nova síntese") integrava a teoria da evolução das espécies por seleção natural darwiniana com a teoria mendeliana dos mecanismos de herança, a fim de pensar a evolução intraespécie, na qual as unidades delimitadas (genes, células, organismos, populações ou espécies) eram consideradas em termos de competição. No entanto, a destruição das complexas relações multiespécies que os seres humanos estão causando (incluindo a extinção de organismos individuais, espécies inteiras ou macrobiomas, como os recifes de coral, e também uma série de "mundos microbianos dentro e fora dos corpos dos organismos"[10]) não pode ser explicada por essas abordagens separatistas. É por isso que a "síntese pós-moderna" (ou "nova nova síntese") se apresenta como um quadro teórico interdisciplinar para conceber a interação de espécies mistas em uma evolução que não pode mais ser vista como a transmissão de traços desejáveis à descendência direta de uma espécie. A evolução das espécies agora é um processo envolvendo múltiplas espécies que deve ser estudado em sua relacionalidade e cooperação por meio de uma "biologia transdisciplinar" em colaboração com as artes, a história, os estudos tecnológicos e a filosofia, entre outras disciplinas possíveis[11].

Essas novas abordagens ao fenômeno aleatório da vida no planeta desafiam o princípio do indivíduo, que estruturou as principais correntes do pensamento biológico, político, econômico e filosófico[12]. A estética, por sua vez, uma disciplina filosófica nascida na Modernidade e que desempenhou um papel importante na teorização da excepcionalidade humana, também será afetada por essa objeção à individualidade. Como veremos, o sujeito, como a filosofia percebeu desde Nietzsche em diante, não pode mais ser o pressuposto a partir do qual hierarquizar e dominar o existente; a saída nietzscheana da estética em direção à fisiologia da arte também reflete esse reconhecimento. O indivíduo, conforme a famosa formulação de Simondon, deve ser estudado como o resultado de um processo de individuação sobre uma realidade pré-individual compreendida como uma multiplicidade intensiva[13].
Nesse sentido, se nunca fomos indivíduos, incluindo os seres humanos, a pergunta sobre a comunidade, compreendida como a pergunta política central sobre como construir laços sociais, está mal direcionada. O que existe é o vínculo, e a individualidade é, em todo caso, um efeito contingente e momentâneo dos vínculos que nos conformam. O sintagma mesmo "comunidade do vivente" deve ser constantemente repensado para evitar ficar preso na lógica exclusivista do indivíduo e na preocupação de ampliar o círculo de identidade/diferenciação que delimita quem é objeto disponível e o que é sujeito calculante[14]. Continuar a questionar como é possível viver juntos pode levar a esquecer que vivemos/somos juntos, que somos essa superfície reunida e mesclada. Uma superfície que não se encaixa mais na lógica do interno e do externo, do todo e das partes, nem na retórica do hospedeiro (hostis/hospes) ou do benefício, mas sim na diversidade de lógicas do que existe, estranhamente combinadas, que tornam possível o que chamamos de vida. O horizonte de análise necessariamente se afastará das reflexões filosóficas sobre a vida em comum dos Homo sapiens habitantes deste arquipélago que desejou ser a União Europeia; uma vez que as reflexões europeias, embora tenham certamente se afastado do individualismo utilitário da economia política clássica, parecem ainda dever ao excepcionalismo humano e ao procedimento de separação e hierarquização envolvidos no exercício da dominação[15]. Será necessário, portanto, que a reflexão seja continuada por "[n]ovos povos, para os quais o termo humano não tenha necessariamente sentido"[16].
Mas talvez nosso horizonte de análise também precise se afastar do biocentrismo que reproduz a máquina de inclusão-exclusão e exclusão-inclusão entre o que está vivo e o que existe. Portanto, como sugere Haraway, pode ser necessário substituir o termo "holobionte" por "holoente"[17] para considerar os encontros simpoiéticos dinâmicos entre o biótico e o abiótico que ocorrem em nosso planeta. Assim como foi necessário incluir o modelo vegetal para pensar além da individualidade animal, talvez seja necessário abandonar o privilégio do que está vivo para evitar não apenas o antropocentrismo (que já foi abandonado por toda a filosofia preocupada com a vida como unidade de análise mais ampla do que o sujeito humano), mas também o antropismo, que transformou a vida em uma desculpa cosmológica que preserva a importância do humano em um universo essencialmente abiótico, como observa Ludueña Romandini[18].
Somente dessa forma, assumindo a juventude radical e a contingência do fenômeno da vida e, acima de tudo, sem confundir “as formas de conexão com as de totalidade”[19], é possível pensar nessa estranha[20] comunidade terrestre do que está vivo/existente sem correr o risco de atribuir-lhe características de uma fusão substancial de indivíduos que sempre culmina em uma hierarquização totalizante, e permitir que ela, em vez disso, permaneça na superfície das relações e encontros casuais entre os seres existentes.
Poderíamos dizer que, se quisermos compreender como o ser humano, buscando escapar do mundo em direção à segura estratosfera das archai universais, se tornou uma era geológica, é necessário abandonar o antropismo justificativo ou culpabilizador de nossas ações na Terra e o pensamento global que o sustenta. Pois o Anthropos da Sexta Grande Extinção não terá sido o ser humano como agente universal, mas sim o conjunto desagregado de indivíduos sujeitos à divisão do trabalho e a todas as contradições que a atravessam. Da mesma forma, a metáfora do mundo como uma esfera na qual tudo está incluído já não poderá ser a Terra que retroage nas ações humanas.

II. O Antropoceno e os efeitos petrificados do cálculo subjetivo
A atenção às relações intra e multiespécies surge em um momento em que essa interação está deixando de funcionar em escala planetária. A questão da simbiose parece surgir apenas quando as formas de estar junto dos existentes se veem ameaçadas por uma nova força que molda a geohistória: “a humanidade tomada em bloco e como um único conjunto”[21]. Embora ainda se debata a possibilidade de chamar essa nova era geológica de Antropoceno, desde 2012 existe um consenso aproximado entre os geólogos em relação ao término do Holoceno. Isso significa que se abriu um novo período de instabilidade em que o planeta está sendo afetado (radicalmente transformado) por um novo agente geológico, a ação humana. No entanto, a velocidade das transformações (geralmente medidas em milhares e milhões de anos) e a diversidade de causas atribuídas a isso (todas de origem humana, mas diferentes, como a invenção da agricultura, a revolução industrial, a era nuclear, etc.) geram uma instabilidade na distinção rígida entre geologia e história, o que possibilita a transição do conceito geológico para discussões filosóficas, antropológicas e políticas[22], e, em alguns casos, levam à proposição de novos nomes menos ambíguos (Capitaloceno, Euroceno, Angloceno, Tecnoceno, Plantacionoceno ou Cthuluceno)[23] para evitar um possível resíduo antropocêntrico que continuaria a considerar a humanidade como um agente universal.
Sem entrar nesse debate, gostaria de enfatizar a mudança de perspectiva ocorrida em relação à figura do ser humano: onde a Modernidade via o progresso da humanidade em direção ao melhor (a invenção da máquina a vapor, a modificação dos cursos d'água e sua transformação em energia elétrica, a invenção de novos materiais, etc.), hoje estamos procurando as ruínas sedimentadas de um devir petrificado[24] de uma humanidade desagregada que, finalmente, iguala em poder às antigas forças geológicas que produziram as mudanças de época. A artificialização progressiva da Terra nos empurra para fora do conceito tradicional de natureza e sua relação oposta com a cultura humana[25]. Com isso, somos convidados a abandonar a insistência ideológica de um sujeito universal abstrato, até mesmo para pensar nas responsabilidades que teremos que enfrentar como espécie diante da destruição da Terra globalizada pelo colonialismo cristão, europeu e capitalista.
Isso significa que o Antropoceno não pode ser lido como o resultado das atividades do Homo sapiens pensado de forma abstrata, mas sim como o efeito de uma ligação particular entre práticas epistêmicas, tecnológicas, estéticas, sociais, políticas e econômicas na "realidade contemporânea do petrocapitalismo"[26]. Essas práticas legitimaram todas as formas de violência conhecidas dentro da hierarquização de nossa espécie (supremacia branca, colonialismo, patriarcado, heterossexismo, etc.), que eram, por sua vez, reproduções perfeitas da violência invisível exercida sobre o mundo não humano.
Portanto, sem apagar a história de violência por trás de um Antropos abstrato que nivelaria as responsabilidades, como diz Latour,
[l]a verdadera belleza del término Antropoceno consiste en llevarnos lo más cerca posible de la antropología y en volver menos inverosímil la comparación de los colectivos liberados por fin de la obligación de tener que situarse, todos, en relación los unos con los otros, según el exclusivo esquema de la naturaleza y de las culturas: unidad de un lado, multiplicidad del otro.[27]
Esta época, tão pós-humana quanto pós-natural, nos oferece a possibilidade de sair do universalismo global para repensar a (re)distribuição do poder de agir. Um agir que talvez não responda mais à distinção humana entre uma práxis política (um fim sem meios) e uma poiesis artística (um meio com vistas a um fim) e pertença a esse terceiro gênero que Agamben, junto com Varrón, chama de "gesto"[28]: uma interrupção da teleologia que seja uma exposição da própria medialidade, da relacionalidade que não é totalizável nem individualizável, que somos os coletivos existentes do planeta.
Assim, o Antropoceno é uma transformação de época a nível geológico que exige repensar também a política e a estética. Por um lado, repensar nossos compromissos para além da hierarquização imposta pela teologia política em direção à construção do que poderíamos chamar de uma geologia política. E, por outro lado, repensar a estética para além de seu colaboracionismo moderno, com base em sua literalidade etimológica como a disciplina voltada para a aisthesis, isto é: a sensibilidade em sua dupla relação com a capacidade de perceber (sensação) e com a capacidade de ser afetado (sentimento). Neste último ponto, dedicarei minha atenção para concluir.

III. A estética e a arte: saindo da bioestética para pensar a biopoiese
A estética moderna, conforme expressa em seu manifesto mais completo, a Crítica da Faculdade do Juízo kantiana (KU), baseia-se no duplo movimento de separar o sujeito do restante da existência para colocá-lo à sua disposição e de manter atado a si esse sujeito que se dessangra, suturando o corte produzido nessa separação. O sujeito, habitante de dois reinos: o da necessidade monolítica do mundo natural e o da liberdade multi-moral, reconcilia-se consigo mesmo graças a uma nova faculdade especialmente projetada para a ocasião, o sentimento de prazer e dor, cujo princípio (a conformidade com o fim, Zweckmassigkeit) lhe devolve uma teleologia que havia se perdido no corte. É de especial interesse para nós aqui o fato de que, para chegar à consideração da vida orgânica, ou seja, à possibilidade de formular uma teoria física da finalidade objetiva da natureza, Kant dedica toda uma primeira parte de sua última Crítica à fundamentação do juízo estético (o comportamento estético do espectador) e à explicação do fenômeno da arte a partir da figura do gênio. A estética, na medida em que propõe uma relação - sentimental e não cognitiva - do sujeito com o mundo circundante e se ocupa da obra de arte bela, é o que permite a Kant formular a ideia de uma "técnica na natureza". A arte serve como modelo explicativo do funcionamento da vida orgânica: talvez apenas através do atraso na consideração da atividade artística possa-se postular a finalidade na organização interna dos produtos da natureza. Na KU, a atividade artística com a qual a estética se preocupa serve de modelo para a construção de uma ontologia da vida, entendida como uma unidade sintética, uma força formadora e uma vontade de si[29]. Por sua vez, a experiência estética é relacionada à questão do sentido da vida através da recondução da estética e da teleologia a uma única faculdade de julgamento, que permite pensar o particular como algo contido no universal e nos permite, assim, desfrutar do acesso a uma ideia coerente da totalidade e suturar assim a ferida que nos causa o fato de sermos habitantes de dois reinos, ou melhor, ter sido recortados do pano de fundo da existência, agora transformado em um todo compacto que nos serve de espelho com o qual podemos nos reconciliar como humanidade.
Por esse motivo, o belo e o sublime, como julgamentos característicos de um espectador iluminado (ou seja, liberado de suas inclinações sensuais e medos mortais), surgem como dois eficazes dispositivos de separação humanizante que preparam o terreno para perpetrar, como seu correlato necessário, uma imagem do globo como um mundo disponível, como Natureza[30]. Eles expressam, podemos dizer, a capacidade burguesa de se distanciar para transformar o agente humano no espectador frio de um espetáculo "natural" que a humanidade inventou: a conciliação da compreensão e da imaginação (belo) ou a experiência sensível do suprassensível (sublime), ambos são instrumentos complacentes de separação e totalização que transformaram o que existe em um recurso "natural" a ser explorado. Da mesma forma, o artista concebido como um ventríloquo da Natureza (que é, por sua vez, o conjunto de valores que as representações subjetivas lhe atribuíram: sujeito hipostasiado ou Ideia negada, não importa, pois é sempre apenas o correlato total ao qual o indivíduo se opõe) é também um arauto de uma falsa reconciliação que é na verdade uma guerra instrumental contra as potências atuantes e sensíveis de tudo o que existe. Uma conjuração imunológica para proteger a vida que importa[31].
Dessa forma, poderíamos argumentar que a estética se tornou - coerente com as práticas de segurança da vida que Foucault chamou de biopolítica - uma bioestética[32], uma anestesia da sensibilidade que, com a ajuda de próteses tecnológicas, nivelam, contraem e canalizam. A crescente convergência da técnica com a biopolítica no projeto comum de garantir a vida contou com o sentimento estético como aliado fundamental para sua perpetuação. As teses benjaminianas sobre a conexão entre a arte aurática e o fascismo, afirma Montani, devem ser retomadas sob essa perspectiva para pensar as derivações intensificadas e capitalizadas pelo governo global da vida na era das tecnociências e biotecnologias: “o dispositivo técnico global faz um uso mais estrutural e 'fisiológico' das categorias estéticas” das quais obtém não apenas a imagem “oficial” (do regime, como nos totalitarismos), mas também “seu horizonte específico - nivelado, contraído e canalizado - de sentido”[33].
Poderíamos acrescentar que há um esvaziamento progressivo do sensível, uma educação sentimental que se tornou sensacionalismo: um fechamento à contingência do mundo e à sua imprevisibilidade, contração, subordinação e normalização da aisthesis, a capacidade que costumava ser nossa primeira abordagem ao ambiente (percepção), mas também nossa primeira compreensão de como estamos envolvidos nele (ser afetados). Exibicionismo de uma vida antes clandestina[34] que nos prepara para a visão fria do espetáculo de qualquer horror tornado imaginável e garante a neutralização de qualquer imagem que mostre o outro de si, seu excesso subversivo.
Frente a isso, benjaminianamente, é necessária uma reabilitação[35] política da aisthesis, uma redistribuição do poder de sentir (perceber e ser afetado) e uma redistribuição do poder de agir, que envolva reconsiderar como privilégio da arte (esse grande veículo da aisthesis) sua capacidade de inventar formas de testemunhar pelas lógicas de existência esquecidas ou exterminadas, e de permanecer no terreno sempre perigoso da imaginação, uma faculdade que sempre nos faz refletir muito e fantasiar com espaços e tempos diversos.
Se o Antropoceno é um fenômeno primariamente sensorial ("a experiência de viver em um mundo tóxico e cada vez mais diminuído")[36], então uma revisão da estética filosófica se torna essencial e, com ela, uma revisão da possibilidade que a arte traz consigo de imaginar/experimentar modos de existência diversos aos quais subtraímos as formas de percepção, sensação, sentir, pensar, agir e ser; já que a educação do sentir humano também teve sua contraparte no esquecimento e redução de outras formas de percepção, outros modos simpoiéticos de estar abertos em relações múltiplas[37]. Assim, o Antropoceno pode ser também uma oportunidade para um apelo a re-imaginar (com a ajuda de algumas discussões biológicas e geológicas atuais) o ser humano que deixou sua marca na pedra, mas também os "holoentes", essas relações dinâmicas e contingentes entre o biótico e o abiótico que povoam o planeta.

Que tipo de arte responderia a esse chamado? Uma arte metaespecífica que imagine a interconexão da matéria biótica e abiótica do planeta em outros tempos e espaços. Exercícios visuais, musicais, literários que assumam perspectivas outras, invisíveis, inaudíveis, indizíveis, mas nunca absolutizáveis ou hierarquizáveis. Muitas práticas artísticas se deslocaram em direção à consideração da materialidade que compõe o mundo, questionando até mesmo as relações entre o orgânico e o inorgânico ou os territórios nos quais essas divisões se tornam possíveis. Talvez a arte sempre tenha desconfiado da primazia do humano e suas construções sempre tenham buscado pensar os limites do sujeito e fantasiar a "natureza" fora dele. Portanto, se o governo e a administração total da vida e do existente - a biopolítica, que é também uma abiopolítica - transformaram o Antropos em pedra, o fundamento monolítico de um globo em ruínas, a arte poderia ser uma biopoiesis - que também seja um fazer com o abiótico. Uma forma de ação que abandone a definição teleológica aristotélica (um meio com vistas a um fim) e que preserve a descrição mais modesta de Platão de uma passagem contingente e contínua do não ser ao ser (e talvez, também, do ser ao não ser: pois o que é um artista senão aquele tolo da terceira via que "erra bicéfalo", confundindo o não ser com o ser que Parmênides denunciou).
Dessa forma, talvez a arte possa assumir e suportar em seu gesto a pura medialidade que somos[38], exibindo, testemunhando o amálgama de entidades em que estamos inseridos. Uma arte responsável, não porque responda a um conjunto específico de regras morais ou se conforme com um dever imperativo mais ou menos universal, mas porque é capaz de responder (respons-habilidade: a habilidade de dar uma resposta[39]) à multiplicidade sem reduzi-la a nenhuma regra anterior, testemunhando por ela, assumindo o risco de todo testemunho: poder dizer, não poder dizer tudo.
Assim como a Ophrys apifera, quero aprender a me mimetizar para honrar a beleza das abelhas extintas.
We make too much history. With or without us there will be the silence and the rocks and the far shining. But what we need to be is, oh, the small talk of swallows in evening over dull water under willows. To be we need to know the river holds the salmon and the ocean holds the whales as ligthly as the body holds the soul in the present tense, in the present tense. - Ursula K. Le Guin, “Infinitive” [40]

Notas e referências:
[1] Cfr. S. Mancuso e . Viola, Sensibilidad e inteligencia en el mundo vegetal, trad. D. Paradela López, Barcelona, Galaxia Gutenberg, 2016, p. 95 e seguintes. “En el mundo vegetal, como en el animal, nadie hace nada por nada, de suerte que también en el gran «mercado» de la polinización tiene lugar una auténtica labor comercial: productos por servicios y vice-versa”. A metáfora continua por algumas páginas, nas quais as plantas são classificadas como “honestas e desonestas”, supomos, com a intenção de reduzir o “desconhecido” do mundo vegetal ao “conhecido” do reino humano que geralmente prevalece nos discursos de divulgação.
[2] S. F. Gilbert, “Holobiont by Birth: Multineage Individuals as the Concretion of Cooperative Processes”, em A. Tsing, H. Swason, E. Gan e N. Bubant (orgs.), Arts of Living on a Damaged World, Minneapolis/Londres, University of Minnesota Press, 2017, p. 74.
[3] Cfr. E. Boncinelli, Vida, trad. A. Miravalles, Buenos Aires, Adriana Hidalgo, 2015, pp. 29-30.
[4] D. Haraway, “Symbiogenesis, Sympoiesis, and Art Science Activism” em A. Tsing, et. al. (orgs.), ed. cit., p. 27. Haraway remete a distinção terminológica entre autopoiesis e simpoiesis às considerações de M. Beth Dempster, cfr. Ibidem, p. 47.
[5] Cfr. L. Margulis e D. Sagan, “The Beast with Five Genomes”, em Natural History 110, N° 5, junho de 2001. Disponível em:
http://www.naturalhistorymag.com/htmlsite/0601/0601_feature.html (última consulta: 8 de junho de 2018). Este exemplo é retomado por Haraway e Gilbert em_ Tsing et al. (orgs.), ed. cit., pp. 26 e 75, respectivamente.
[6] S. F. Gilbert, “Holobiont by Birth:...”, ed. cit., pp. 73-74.
[7] Cfr. L. Margulis e D. Sagan, ed. cit.
[8] Refiro-me ao título de um artigo que, parafraseando o Nunca fomos modernos latouriano, apresenta uma visão do fenômeno simbiótico da vida: S. D Gilbert, J. Sapp e A. Tauber, “A Symbiotic View of Life: We Have Never Been Individuals” em Quartlery Review of Biology 87, N °4, 2012, pp. 325-341.
[9] Cfr. M. McFall-Ngai, “Noticing Microbial Worlds. The Postmodern Synthesis in Biology”, em _ Tsing et al. (orgs.), ed. cit., pp. 51-69. Como se notará imediatamente, o pós-modernismo aqui proposto não se relaciona com as premissas do pós-modernismo filosófico ou artístico das últimas décadas do século XX, mas conserva apenas seu caráter histórico e opositivo de “vir depois” e “distanciar-se” da modernidade biológica.
[10] Ibidem, p. 51.
[11] Cfr. D. Haraway, “Symbiogenesis, Sympoiesis, and Art Science Activism” em A. Tsing, et. al., ed. cit., p. 28.
[12] S. F. Gilbert, “Holobiont by Birth:...”, ed. cit., p. 75.
[13] A filosofia transindividual de Gilbert Simondon excede em muito o delineamento deste trabalho e não constitui o quadro a partir do qual escrevo, uma vez que não é uma fonte declarada dos debates que busco rastrear aqui. No entanto, sua importância na economia dos discursos a que me refiro deveria ser objeto de uma análise profunda, na medida em que aborda sistematicamente uma crítica à concepção individualista que prevaleceu no Ocidente desde a Antiguidade. Para uma interpretação materialista de Simondon, cfr. M. Combes, Simondon. Una filosofia transindividual, trad. P. Ires, Buenos Aires, Cactus, 2017.
[14] Inverto de propósito a atribuição do quem e do quê para enfatizar seu caráter arbitrário.
[15] Para uma argumentação detalhada sobre o especismo implícito na discussão europeia sobre a comunidade Cfr. P. Fleisner, “Amores perros. Figuraciones artísticas y comunidades reales entre canes y humanos”, em Instantes y Azares, escrituras nietzscheanas, Ano XIII, N° 13, outono 2015, pp. 221-222.
[16] B. Latour, “El antropoceno y la destrucción (de la imagen) del globo”, em Cara a cara con el planeta. Una nueva mirada sobre el cambio climático alejada de las posiciones apocalípticas, trad. A. Dilon, Buenos Aires, Siglo XXI, 2017, p. 165.
[17] D. Haraway, “Symbiogenesis, Sympoiesis, and Art Science Activism”, ed. cit., p. 26.
[18] Cfr. F. Ludueña Romandini, Más allá del princípio antrópico, Buenos Aires, Prometeo, 2012, pp. 11-12 e 63.
[19] B. Latour, “El antropoceno y la destrucción (de la imagen) del globo”, trad. cit., p. 151.
[20] Refiro-me aqui às conceituações nietzscheanas e pós-nietzscheanas da estranheza que o grupo de pesquisa liderado por M. B. Cragnolini vem explorando há vários anos. Cfr. M. B. Cragnolini (comp.), Modos de lo extraño. Subjetividad y alteridad en el pensamiento postnietzscheano, Buenos Aires, Santiago Arcos, 2005; Estrañas comunidades. La impronta nietzscheana em el debate contemporáneo, Buenos Aires, La cebra, 2009; e Estraños modos de vida. Presencia nietzscheana em el debate entorno a la biopolítica, Buenos Aires, La cebra, 2014.
[21] B. Latour, “El antropoceno y la destrucción (de la imagen) del globo”, trad. cit., p. 132.
[22] Ibidem, p. 137
[23] Cfr. D. Haraway, “Tentacular Thinking: Anthropocene, Capitalocene, Chtulucene” em e-flux journal N° 75, setembro de 2016, pp. 1-17 e D. Haraway, “Anthropocene, Capitalocene, Plantacionocene, Chtulucene: Making Kin”, em Environmental Humanities, vol. 6, 2015, pp. 159-165. (Há uma tradução em espanhol por A. Navarro e M. M. Andreatta, em Revista Latinoamericana de Estudios Críticos Animales, ano III, vol. I, junho 2016, pp. 15-26).
[24] A expressão é de B. Latour, 'El Antropoceno...”, trad. cit., p. 136.
[25] Embora não entrarei nessa discussão aqui, o conceito de Gaia, proposto por Lovelock e Margulis nos anos setenta, funciona como a 'figura (afinal profana) da natureza' ou como 'uma disposição caprichosa de forças indiferentes às nossas razões e aos nossos projetos' que irrompe em resposta às modificações humanas introduzidas pela transformação de tudo o que existe em recurso para a perpetuação do domínio. Cfr. I. Stengers, 'A Intrusão de Gaia', em En Tiempos de Catástrofes. Cómo resistir a la barbárie que viene, trad. V. Goldstein, Buenos Aires, NED edições, pp. 39-47. [N.T.: Optou-se por preservar a referência da autora à obra de Stengers em língua hispânica, embora exista uma edição brasileira publicada em 2015 pela editora Cosac Naify]. A Terra considerada mais além das ideias globais de natureza selvagem e ameaçadora, frágil e desprotegida, ou recurso a ser explorado, mais além das ideias de organismo calculante e totalidade inerte, simplesmente como 'o nome de um processo pelo qual determinadas ocasiões variáveis e contingentes obtiveram a oportunidade de tornar mais prováveis os eventos posteriores [...] O que significa que se parece muito com aquilo que acabamos por considerar como a própria história”. B. Latour, “La figura (al fin profana) de la naturaleza', em Cara a cara..., trad. cit., p. 126. Nem superorganismo, nem Providência total, Gaia é a dissolução da distinção entre natureza e história a favor de uma redistribuição das possibilidades de agir.
[26] H. Davis e E. Turpin, “Art & Death: Lives Between the Fifth assessment & the Sixth Extinction”, em H. Davis e E. Turpin (orgs.), Art in the Anthropocene. Encounters Among Aesthetics, Politics, Environments and Epistemologies, Londres, Open Humanities Press, 2015, p. 6.
[27]B. Latour, 'El Antropoceno...', trad. cit., p. 165. [N.T.: optou-se por transcrever apenas a citação em espanhol, dada sua relativa similaridade com a versão em língua portuguesa].
[28] Cfr. G. Agamben, 'Notas sobre el Gesto' em Medios sin fin. Notas sobre la política, trad. A. G. Cuspinera, Valencia, Pre-textos, 2001, p. 54.
[29] Cfr. Kant, Crítica del juicio, trad. M. García Morente, México, Porrúa, 1996, §77, p. 344. D. Tarizzo oferece uma reconstrução dessa ontologia da vida, em La vita, un’ invenzione recente, Roma/Bari, Laterza, 2010, pp. 37-47.
[30] Uma interpretação do sublime kantiano nesse sentido pode ser lida em P. Fleisner, “O sublime animal. Uma leitura a contramão da experiência sensível da (in)dignidade Humana” em V. Freitas, R. Costa e D. Pazetto (orgs.), O Trágico, o Sublime e a Melancolia, Vol. 2, Belo Horizonte, Relicário Edições, 2016, pp. 127-136.
[31] Independentemente da ênfase que se queira dar à entonação do sintagma: seja na indicação da obstinação pela vida como novo centro ou na denúncia da hierarquização dentro do que está vivo (sujeito, homem, europeu, branco, que deixa de fora a mulher, criança, negro, animais superiores, insetos, organismos unicelulares, florestas, etc.).
[32] P. Montani, Bioestetica. Senso comune, técnica e arte nell’età dela globalizazione, Roma, Carocci, 2014, especialmente pp. 91-95. Embora eu retome este conceito de bioestética pensado como uma anestética à qual o sujeito foi submetido, não seguirei aqui, pois não compartilho suas premissas, a reconstrução arendtiana da estética de Kant proposta pelo autor nem a interpretação que ele faz de outros 'marcos' na história da estética, como Schiller e Nietzsche.
[33] Ibidem, p. 92.
[34] E, por isso, eminentemente fisiológica, simultaneamente privada e política. Cfr. G. Agamben, L’uso dei corpi. Homo sacer, IV, 2, Vicenza, Neri Pozza, 2014, pp. 11-18.
[35] No sentido literal de um conjunto de técnicas e métodos que servem para recuperar uma função ou atividade do corpo que diminuiu ou se perdeu devido a um acidente ou doença.
[36] H. Davis e E. Turpin, “Art & Death: Lives Between the Fifth assessment & the Sixth Extinction”, ed. cit., p. 3.
[37] O Center for PostNatural History de Pittsburgh tem trabalhado no registro desta situação, que inclui um museu com exposições permanentes onde se estudam as origens, os habitats e a evolução dos organismos que foram alterados pelos seres humanos.
[38] Cfr. G. Agamben, 'Notas sobre el Gesto', trad. cit., p. 68, e nota 28 deste texto.
[39] Cfr. D. Haraway, 'Anthropocene, Capitalocene, Plantationocene, Chtulucene:..', nota 17, ed. cit, p. 165.
[40] Uma tradução possível: "Fazemos história em demasia.// Com ou sem nós / haverá silêncio / e pedras e resplendor. / Mas o que devemos ser / é, ai, a pequena conversa das andorinhas / à tarde sobre/ águas tranquilas sob os salgueiros. / Para ser, precisamos saber que o rio / retém o salmão e que o oceano / retém as baleias tão delicadamente / quanto o corpo retém a alma / no presente, no presente."
Comments