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A morada mais-que-humana

  • Foto do escritor: Nathalia Leter
    Nathalia Leter
  • 3 de ago. de 2024
  • 21 min de leitura

*Texto apresentado na Residência de Leitura do 9o Congresso de Arte, Ciência e Tecnologia da UEMG, realizado pelo núcleo LABFRONT.


O sol abre meus olhos por volta das 6h da manhã. Ainda um resíduo de sonho sombreia o corpo, a consciência desmanchada luta por se reagrupar. Aos poucos vou me instalando no dia que começa. Hoje é 22 de dezembro de 2023, solstício de verão. O esboço dessa escrita começa a se espreguiçar em meus pensamentos, mas eu ainda não me dei conta disso. Às 8h30, enquanto começava a varrer e os raios de luz penetravam a sala, poeiras de palavras esvoaçavam ainda difusas. 


Estou preparando a casa para a chegada da família, que vem para o Natal. A invisível dança dos tecidos musculares, dos ossos e articulações, os batimentos cardíacos em compasso com o ritmo dos pulmões empurrando as costelas e fazendo circularem líquidos e gases pelo corpo enquanto estou varrendo informam-me sentimentos que ainda carecem de seu envelope verbal [1]. A pele contém a carne que bombeia. Mínimas movências do espírito pelas dobras corporais, por onde deslizam sensações, fragmentos de pensamentos dispersos pelas gavetas somáticas, das quais começam a emergir imagens e balbucios imprecisos. Os braços serenamente vão arrastando a poeira do tempo, em restos de epiderme, insetos, folhas e pêlos. Restos do que fui misturados aos traços inumanos que coabitam a morada. Algo ainda sem forma quer se dizer.


Por diversos momentos, enquanto colocava os tapetes para lavar, pensei em parar para escrever. Mas então os cuidados domésticos me puxavam para continuar nas artes de instaurar um ambiente para receber aqueles que amo. A chaleira então apita o fervor da água e eu pouso, por alguns instantes, numa xícara de café. Corpo jogado contra o batente da porta, o olhar respira no silêncio povoado de pássaros no jardim e no gosto amargo do café. Vislumbres de pensamentos decantam com a poeira no assoalho da casa e a poesia no soalho pélvico. Os lençóis lavados já flutuam pelos varais, os tapetes giram dentro da máquina e as palavras giram dentro de mim, uma à procura da outra, atraídas por magnetismos sinápticos que vão alinhavando frases encarnadas nas fibras dos músculos que respiram e se tonificam no trabalho da casa. Estou corpando [2] uma escrita enquanto produzo uma morada neste dia que inicia. E gostaria, primeiramente, de enunciar a inscrição poética invisível do rastro perfumado do ar, produzido pela brisa que sopra os lençóis nos varais. Uma poesia doméstica dos ventos.



O despertar de um certo interesse estético pela rotina dos corpos que se dedicam aos cuidados fundamentais da (e com a) vida aconteceu no dia em que colhi pela primeira vez um repolho que plantei em meu jardim. Ao cortá-lo em duas partes, detive-me longamente a observar suas linhas irregulares que perfazem múltiplas camadas. Ali tive uma espécie de epifania: nas dobras do legume, vi a experiência do tempo materializado. Toda a condensação das forças de minhas mãos e dos astros, das microbiotas do solo, das chuvas, dos ares, das partículas minerais com que a planta forma seus aminoácidos, suas cadeias proteicas… o absoluto Todo cósmico que incide sobre as superfícies do corpo vegetal, que é o espaço infinito envolvendo e revolvendo-se nas dobras das folhas de um repolho [3]. Então, subitamente, já não se trata apenas de ingerir um agregado de fibras e compostos moleculares. Trata-se de tempo e de espaço materialmente encarnados no corpo de um ser que me nutre. Isto é comer.


Penso e sinto a dimensão cósmica desses fatos biológicos em toda sua frugalidade cotidiana, enquanto lavava o banheiro. A respiração arfante, a caixa toráxica engajada no esforço de conter as excitações, as membranas, as paredes da casa. Forcei-me a pausar no momento em que esfregava o limo da cortina do chuveiro e larguei panos e escovas para correr ao computador pois, a essa altura – já passam das dez –, a escrita vai tomando corpo e rasgando passagens pelos poros. 


Aqui fala uma mulher em suas funções domésticas. Uma fêmea humana secretando suores e pensamentos que tantas vezes lhe escaparam antes que os dedos pudessem alcançar o teclado. Efêmeras como os orvalhos do jardim, que a essas horas já evaporaram, tão facilmente as palavras volatilizam-se das mãos fazedoras, pingam e secam no chão sem jamais chegar à matéria textual. Tento abandonar tudo para ir fabricar algumas linhas, mas eis que agora apita a máquina de lavar avisando que é momento de estender os tapetes – afinal, mais tarde é bem possível que chova e é preciso não perder as preciosas horas de sol para secá-los. Fico ansiosa, sentindo-me presa às tarefas da casa e desejando agora apenas ser escritora. Angústia é uma compressão na garganta, um sufocamento que queima a boca do estômago em silêncio e exaspera. Falta tempo para tantas que sou e preciso ser. 


Quando submeteu-se à experiência de trabalhar como operária da Renault, a filósofa francesa Simone Weil pôde atestar o nível de esgotamento físico e mental a que o serviço maquinal condenava os trabalhadores no chão de fábrica, quando ela mesma atingiu o ponto de já não mais ser capaz de pensar [4]. Disse ela a outra Simone – de Beauvoir – que só uma coisa importava: a revolução que desse de comer a todo mundo. E, quando esta retrucou dizendo-lhe que o importante não era fazer os homens felizes, mas encontrar-lhes o sentido da existência, Weil apenas respondeu "Nota-se que você nunca passou fome". Há pensamentos que são produzidos por corpos saciados e outros que emergem das urgências e potências da fome [5].


O feijão cozinha lentamente na panela de pressão. Estendo rapidamente os tapetes pela varanda e finalmente chego ao meu Macbook Air, um modelo meio antigo que comprei recentemente a contragosto, porque o anterior já estava lento demais para minha necessidade de produzir nos intervalos em que o fluxo dos pensamentos decide verter e posso pausar os fazeres por algum tempo. Os notebooks da Apple, segundo li em algum artigo na internet, são “esculpidos” num bloco de alumínio, levando ainda alguns outros minérios na sua composição, entre eles ouro e tungstênio. Para obter o alumínio, é necessário extrair gigantescos pedaços de rochas ricas em minerais, como a bauxita. Tenho, portanto, nas minhas mãos um pequeno pedaço extirpado da crosta terrestre  – provavelmente deixando para trás um rastro de desmanches socioambientais – que posteriormente foi usinada por robôs e humanos associados resultando nisso que, então, se traduz em produto ao ganhar um código de barras [6]. Mediante um esforço de imaginação, no momento em que me sento para escrever, confabulo pensamentos sobre a trajetória dessa máquina eletrônica sem passado e sem muito futuro [7]. Sua história me é estranha e sua funcionalidade efêmera. 


Sento-me à varanda para escrever. Numa árvore adiante, um passarinho calcula cada fio de palha aplicado à confecção de seu ninho. A aranha dedica-se à fina tessitura de sua teia. As formigas a remover cada grânulo de terra para abrir os recintos de seu formigueiro. E eu vivo a experiência radicalmente biológica de um animal bípede produzindo meu cotidiano com as rochas tornadas máquinas, o barro tornado tijolo, as plantas tornadas esteiras, roupas, remédios e carnes. E poliamidas, polietilenos, policarbonatos, polímeros diversos tornados objetos pelas indústrias e fábricas espalhadas por longínquos e insondáveis territórios do sistema capitalista globalizado. Além de edulcorantes, emulsificantes, condicionantes, estabilizantes, conservantes, sequestrantes, solventes, acidulantes e adoçantes. Suplementos proteicos, creatina, colágeno, oligoelementos, ômega 3, sais minerais e aminoácidos essenciais ativadores dos neurotransmissores que regulam as taxas de serotonina, dopamina, endorfina e ocitocina. 


São muitas as camadas que se revolvem sobre o fundamento material da vida, dobrando-se multiplamente sobre si mesmas numa espécie de cyber-repolho inapreensível. O corpo da Terra contraído, recortado, industrializado e comercializado está bem aqui ao meu redor: é minha casa, são meus tapetes, minhas roupas, as cobertas, o computador. Em que mais eu deveria pensar senão nisso? O que faço agora, senão agachar-me como quem cata fragmentos de vidas caídas e descasca do chão os diversos sedimentos das estórias [8] prensadas, apagadas e silenciadas? Desço, também, em direção aos corpos que limpam a casa, que cuidam das crianças, que recolhem os resíduos do uso doméstico dando-lhes destinações diversas, que constroem moradias, que produzem um sistema de irrigação, que cavam lagos para represar a chuva, que plantam, que cultivam, que colhem, que preparam e servem alimentos. Desço e emaranho-me nos labirintos das origens das coisas, cujos componentes se perdem nos confins das cadeias produtivas globais. Experimento a irrelevância anônima de ser alguém que apenas cozinha olhando a paisagem emoldurada pelos filtros da percepção demasiado humana. E escrevo como quem persegue o mais-que-humano em mim.


Meu amigo Alexis Milonopoulos propõe uma cosmovisão alimentar na qual se pretende que a boca não comece no corpo, mas na terra [9] onde nascem e crescem os seres não humanos que nos alimentam. Proponho assim, preliminarmente, que o pensamento estético não comece no tempo excedente que se disponha (ou não), após cumpridas as práticas cotidianas que tecem o existir: o pensamento não começa depois de um corpo saciado. Pensar e criar começa pelo desejo, pelo apetite [10]. A fome, portanto, não é minha: é o desejo mais-que-humano da vida que singularmente me atravessa e me vincula aos outros seres [11]. 


E meu apetite, neste momento, é por escrever. Tenho fome de roubar momentos em meio às tarefas do dia para verter minha voz na escrita, para sentir que existo mais firmemente. Para comunicar a outros que aqui existe um vivo, uma perspectiva singular. Um corpo de mulher que pulsa, sente, pensa e deseja. Eu pensava tudo isso que escrevo enquanto limpava meu vaso sanitário, removia as gotas de pasta de dente da bancada, retirava o lixo do banheiro e trocava a roupa de cama. Acontece que esses pensamentos não seriam percebidos se eu não tivesse ferramentas e recursos para pensar e escrever, algum excedente de tempo e fôlego para transpirar palavras. O pensar do corpo passaria inexistente se eu não tivesse algum poder de produzir uma argumentação pelos que estão por demais ocupados em tarefas tão indispensáveis e extenuantes quanto pouco valorizadas como faxinar, trocar as fraldas de um bebê ou de um idoso, plantar mudas e sementes, dar almoço e banho nos filhos para irem à escola. 


Não quer dizer que eu não pensasse – ou não fosse capaz de pensar – enquanto cuidava materialmente da vida, apenas não teria tempo de declarar minha ecologia de palavras, se acaso houvesse quiabos necessitando de serem colhidos antes que se tornassem duros e fibrosos; além de crianças a quem tenho de dar almoço e levar ao futebol. Durante a fase de quarentena na pandemia, uma amiga cineasta confidenciou-me que ficar com as filhas em casa estava lhe exigindo tanto que não sobrava instantes para ler. Disse-me que se sentia “emburrecendo”. Outra amiga confessou-me que tudo se resolveria facilmente se ela apenas atirasse seu carro da montanha com os filhos dentro. Mulheres esgotadas.


Da mesma maneira que o trabalho não remunerado das mulheres relativos aos cuidados e fazeres domésticos, sexuais e reprodutivos, conforme apontou Silvia Federici, foi e ainda é fundamental no processo de acumulação do Capital [12], atribuir valor estético aos trabalhos fundamentais da vida tem implicações políticas, econômicas e culturais. Posto de outro modo, enquanto Platão e seus companheiros sentados à mesa, ébrios de vinho a se refestelar de fartas travessas de comida, se colocam a formular o que viria a se tornar a base da tradição do pensamento ocidental, eu gostaria de perguntar o que pensam – e como pensam – aqueles e aquelas que cultivaram e produziram os alimentos do banquete dos filósofos? E em que pensavam as pessoas – provavelmente escravizadas, de qualquer modo não-cidadãs atenienses – que depois cuidaram de recolher os restos, limpar a mesa e lavar as louças para o próximo jantar? Simone Weil concordaria que estas não são perguntas irrelevantes. Gostaria de poder dizer que há mais desejo, valor filosófico e potência inventiva na imanência dos corpos que fazem coisas do que pode supor a luxuosa intelectualidade de nosso antropoceno. 


Modos de habitar, de vestir, de comer, de amar, produzir linguagem, experimentar satisfação e alegria têm um fundamento material. Mesmo que a necessidade de um homem se resuma a um cajado, como já bem o disseram Marx e Engels [13], ainda assim foi preciso cortar e esculpir o pedaço de pau usado para esse fim. Importam os meios usados para a produção do cajado e quem o esculpe. Importa a árvore de cujo corpo se extraiu o pau com que se fez o cajado. Importam as estórias por trás dos entes humanos e não humanos com os quais se produzimos mundos. Importam quais estórias contam estórias. E afinal, como disse o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, em tempos de degradação ambiental e mudanças climáticas, sabemos que é necessário modificar as bases materiais de nossa existência, apenas não sabemos como passar "do discurso ao ato" [14]. Importam os atos que revelam discursos.


Esperam-me as panelas engorduradas do almoço. Para que eu possa me acomodar tranquilamente para escrever coisas inspiradoras e esteticamente relevantes, necessito de que a pia esteja livre de louças e a cozinha reordenada. Se, contudo, disponho de uma renda baixa e não tenho como pagar por esse serviço, tenho eu mesma de fazê-lo, restando-me menos tempo para a produção intelectual. Por outro lado, se não houvesse tanta força de trabalho disponível para os serviços domésticos nos países latino-americanos, os pagamentos e os regimes de trabalho seriam tão mais caros que ter uma empregada ou uma diarista seria um luxo reservado para bem poucos. Como medir o valor de todo o trabalho braçal envolvido e oculto sob o brilho de um pensamento que fulgura nas páginas de um texto? E sou eu este corpo faminto e saciado, que limpa e escreve, que se agacha rente ao chão para plantar sementes e colher uma pequena poesia na banalidade do dia. 



Antes de compor a Eneida, no século I a.C., sob encomenda do césar Augusto, Virgílio produziu um poema pastoril (Bucólicas, 37 a.C) e um poema agrícola (Geórgicas, 30 a.C), mas a obra pela qual o poeta tornou-se amplamente conhecido – talvez não pelos meus vizinhos aqui da roça, mas pelo ocidente intelectualizado – foi a epopeia que canta a glória e o poder do Império Romano. Essa e outras narrativas épicas, como observa a escritora de ficção científica Ursula K. Le Guin [16], distanciam-se dos fazeres e saberes que produzem a vida comunitária para enaltecer as virtudes daqueles que se lançam a empreendimentos de guerras e conquistas envolvendo assassinatos, esmagamentos e estupros: as façanhas do Herói. Assim como nossa tradição filosófica nasceu da nata de pensadores desobrigados das tarefas no campo e na casa, relegadas aos personagens que não figuram na cena do banquete, também nossa tradição literária se sustenta sobre cânones que tratam daqueles que deixaram a trivialidade da aldeia para ir em busca de glórias e honrarias. E afinal, pondera Le Guin, qual interesse poderia haver nos relatos daqueles e daquelas que permanecem repetindo o mesmo ritual diário de colher, processar, cozinhar, limpar etc?



Penso em minha mãe, em minha avó e nas sacolas da ficção de Le Guin, enquanto carrego de um canto a outro um cesto cheio de roupas sujas, uma bacia de roupas lavadas, um saco de folhas secas rasteladas para a composteira, uma mala com meus apetrechos de chá. Desejo poder pausar para recuperar o intervalo de apenas existir para mim mesma. Não ter quer servir, que doar meu afeto e meus cuidados para outrem. Penso em como gostaria que alguém cuidasse de tudo para que eu pudesse sentar na mesa do ateliê e produzir mais algumas obras têxteis e algumas linhas deste texto. Numa sociedade mais assentada sobre uma ética comunal, a divisão social do trabalho nos permitiria transitar com mais liberdade por atividades diversas sem que tivéssemos de nos fixar e identificar com uma prática apenas [17].


Ouço um trovejo anunciando as chuvas neste pedaço de céu da Mantiqueira. Pauso por um momento para checar se devo retirar os tapetes das muretas, mas um resto de sol ainda persiste e me dá mais tempo aqui. Virgínia Wolf, em longas e detalhadas páginas que descrevem as diferenças dos alimentos servidos na universidade masculina e na primeira universidade feminina fundada na Inglaterra, nos conduz a pensar sobre a relação entre o que se come e a qualidade de pensamentos que se consegue produzir, refletindo então sobre as diferenças de gênero que a levaram à conclusão de que, para uma mulher tornar-se escritora, ela deveria dispor de dinheiro e de "um teto todo seu" [18]. Certa vez, segundo relatou-me o filósofo do alimento Nicola Perullo, perguntaram-lhe qual a relação entre a filosofia e os alimentos, que é sua área de investigações dentro da Estética. Perullo começou a resposta dizendo que a relação mais imediata e simples que se poderia apontar reside no fato de que um filósofo precisa comer para poder pensar [19]. 


Lembro-me de quando estive na cidade catalã de Barcelona e caminhava pelas ruas sentindo no corpo a facilidade de acesso às condições de produzir cultura num país rico. Ali experimentei, como por contraste, toda a letargia, o cansaço, o desgaste e o sacrifício de nossos corpos colonizados. A distância entre o corpo e seus meios de produção. A luta pela sobrevivência, por um pouco de conforto e um teto todo nosso nos custando tempo e excedente energético para a mais-valia poética. Como verificou por si mesma Simone Weil, difícil pensar quando o corpo se esvaiu num trabalho alienado de si e em horas perdidas em trânsitos para ir e voltar do serviço, suportando o próprio peso de pé em transportes coletivos lotados. Eu provavelmente desejaria apenas esquecer e alienar-me ainda mais num pacote de salgadinhos ultraprocessados, qualquer programa de humor televisivo e me entregar ao sono.


Tive o privilégio de poder escolher não ter televisão e dispor de desejo para viver as vozes da montanha, mesmo enquanto me dedico aos fazeres. Gosto das luzes baixas e indiretas, acendo velas, fogueiras e fogão de lenha. E rememoro as ocasiões em que acabava a luz no nosso prédio em São Paulo e não tínhamos outra opção senão nos reunir na sala de estar para apenas estar, de fato. Por alguns instantes, deixávamos de nos comportar como típica família branca de classe média para sermos apenas corpos iluminados pelo mesmo velho fogo dos primórdios dos tempos, antes que a eletricidade viesse nos violentar novamente. Raros momentos em que a soberba individualista que predominava na ecologia social daquele bairro onde cresci se tornava um pouco menos inóspita para meu apetite por vida comunal. 


E agora pauso, às 16 horas, para seguir com as práticas de hospitalidade. Responder às mensagens de minha mãe e irmã sobre os arranjos da ceia natalina. E pagar os queijos que comprei de minha vizinha, Dona Fátima. E retomar as limpezas da casa. Pausa para recuperar também os fiapos desta escrita entranhada materialmente na jornada diária dos astros. Como um olhar que percorre e desliza pelas superfícies e os silêncios manguezais do dia-a-dia onde a vida é embrionada, gestada, cultivada, amamentada, instaurada e formalizada em estéticas existenciais, vou exercitando reconhecer os saberes específicos de minha mãe, que me ensinou a fazer ninho; e de minha avó, que me ensinou a escutar e alimentar o apetite dos corpos. Honro, nessa escrita, essas mulheres cujo trabalho de cuidado garantiram minha sobrevivência na infância. Honro também todos os seres humano e não humanos que me vestem, me abrigam, me nutrem, aquecem, banham, embalam, acariciam, envolvem, inspiram e fortalecem para que eu possa exercer este singelo ofício de bípede simbólica na grande floresta das produções textuais.


Minha casa tem muitas portas e janelas. Saruês circulam pelo telhado, morcegos aninham-se no forro, o bezerro do vizinho recém vendido para outro proprietário escapa do cercado e vem tentar exilar-se no fundo do jardim. Os seres entram e saem por todos os poros e orifícios de meu ambiente. Muitos mundos coabitam esta morada. Negocio convívios com aranhas armadeiras, mofo, marimbondos e lagartixas. Vivemos numa pequena ecologia que me exige constantes exercícios de pensar e tomar pequenas decisões de cuidado.


Toma-me tempo e esforço separar os resíduos e preparar produtos de limpeza livres de derivados petroquímicos, enquanto vejo o carro estacionado lá fora e pondero sobre minha vida inseparável do petróleo. Reconfigurar a estética do viver em novos agenciamentos numa ética do cuidado demanda imensos esforços adaptativos e novas educações. Toda uma luta para conseguir manter meus pensamentos agregados (enquanto me dedicava a arrancar o mato do jardim) para que ganhassem a consistência de uma escrita. Uma luta para sentir o desconforto que me atravessa e que me convoca a fazer deste problema que me atravessa uma força propulsora e um mote de minha ação no mundo. A fome nos afia os dentes e desafia a ordem. 


Recolho os tapetes sob o tremor dos ventos que apagam as luzes da casa. O crepúsculo vem preencher-me do tempo em suspenso. As paredes cheias de galhos pendurados com bordados, tecidos e papéis, poesias visuais, pequenas instalações de crochê, o violão, o violoncelo, a mesa do ateliê cheia de pedaços de coisas que talvez venham a se tornar alguma nova criação no futuro, quem sabe. O lugar que abriga as forças generativas, o fundo cósmico de onde tudo nasce e emerge. Esboços de desejos que esperam pela minha escuta e pelas mãos que os possam esculpir. Sons bovinos na pastagem ao redor. O planeta tão vivo, pulsante e íntimo em sua enormidade. Respiro as presenças que me secretam pensamentos intraduzíveis enquanto espalho os tapetes limpos pelo chão.



Preparo-me um chá chinês feito das folhas da Camellia sinensis picadas por pequenos insetos da espécie Jacobiasca formosana, que disparam nelas misteriosas reações bioquímicas na forma de compostos aromáticos. Uma associação entre humano, planta e inseto que resulta na produção de um dos chás mais perfumados e exuberantes que existem, o Oriental Beauty. Sorvo com ele o cheiro das chuvas na Mantiqueira e a calma reconstruída em corpo e ambiente. À poeira varrida de hoje, sucederá o resíduo deste dia no amanhã e as ruínas do tempo seguirão incidindo às minhas costas e assim sucessivamente. Reconstruir a casa é um constante adiamento dos limites, tensionando o caos e o tempo para produzir algum sabor de duração. E algum saber que perdure. Dramas e dramaturgias de um corpo que luta para existir. 


A noite cai como uma sacola cheia de escritas e estrelas. Sei, no entanto, que o mercado não cessa de preparar suas presas para devorar minha carne. Sei também que a floresta permanece acesa e incide por todas as frestas. Nada está em quietude quando a fome é o motor e o combustível da vida. E assim, toda a luta travada neste texto é por minerar uma rara e quase impossível palavra: repouso.




Nota:

  1. Formulado e constantemente usado por Regina Favre nos seus grupos de exercício, o conceito de "envelope verbal" dá conta de uma questão central no pensamento kelemaniano, que se refere ao processo pelo qual atribuímos uma categoria ou legenda aos variados estados somáticos que experimentamos, isto é, trata-se do momento em que um estado emocional ainda difuso e indefinido ganha uma forma expressiva na linguagem. A esse respeito, numa passagem de Realidade Somática [1994], Keleman exemplifica que "um agregado de sentimentos se junta e desenvolvemos uma emoção a que chamamos amor. Ela é composta de luxúria, desejos, cuidado, ternura, calor ou alegria. Outro agregado de sentimentos a que chamamos raiva, pode ser composto de irritabilidade, arrogância, gritos ou agressão física" [p.28]. Entretanto, ao propor o conceito de "envelope verbal", Regina desdobra e aprofunda a investigação dessa relação forma-emoção < > expressão-linguagem, convidando-nos a praticar modos cada vez mais sofisticados de nomear e descrever os infinitos matizes emocionais vividos por um corpo. Comportamento e linguagem, segundo a pesquisadora, um não se forma sem o outro.

  2. "Corpar" – to body – é um verbo-conceito da linguagem formativa proposta pelo corporalista norte-americano Stanley Keleman, que diz das potências poiéticas de um corpo como processo vivo em constante formação e maturação de suas formas conectivas no presente, nas relações com os ambientes de que são parte (e coprodutores). A filósofa e educadora somática Regina Favre trabalha intensamente a "prática de corpar" como base de sua clínica e instalação pedagógica. Ver em: FAVRE, Regina. Do corpo ao livro. São Paulo: Ed. Summus, 2021. E também em: KELEMAN, Stanley. Realidade Somática: experiência corporal e verdade emocional. São Paulo: Ed. Summus, 1994. 

  3. Atribuo às leituras de Emanuelle Coccia o acesso sensível à percepção das forças cósmicas que incidem sobre um corpo vegetal, desde assumir a perspectiva desse corpo-planta que experimenta, absorve e produz-se com esses múltiplos agentes inorgânicos que permitem a vida. 

  4. Extraio essa passagem sobre Simone Weil a partir da peça "Afinação I", solo teatral concebido e protagonizado em 2017 pela atriz e diretora Georgette Fadel, em que narra a história da filósofa francesa.

  5. Milonopoulos, A. Potências da fome, potências da vida: uma cartografia das prática alimentares expressas no Instagram, 2022.

  6. TSING, Anna. O cogumelo no fim do mundo. Sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo. São Paulo: n-1 edições, 2022.

  7. Idem. "A acumulação por aproveitamento, com seu aparato de tradução, converte os minérios que foram extraídos em ativos legíveis para os negócios capitalistas. E o meu computador? Após sua curta vida útil (...), talvez eu o doe para uma organização de caridade. O que acontece com esses computadores? É provável que passem por um processo de queima, que facilita a extração de alguns de seus componentes. Seguindo os ciclos de aproveitamento, crianças os desmontam para extrair cobre e outros metais" [São Paulo: n-1 edições, 2022]. Sobre a destinação dos computadores mencionada por Tsing, cfr: Peter Hugo, "A global graveyard for dead computers in Ghana", New York Times Magazine, 4 ago, 2020.

  8. Os tradutores da obra O cogumelo no fim do mundo, de Anna Tsing, explicam a escolha por adotar a palavra "estórias" na tradução, reativando essa forma que foi desabilitada pela reforma ortográfica com a intenção de aproximar o termo ao pensamento da autora, que defende as "artes de notar" e a proliferação de estórias como método de conhecimento. "Estórias", portanto, torna-se um conceito que diz de um procedimento científico voltado à produção de saberes específicos e situados.

  9. No início de sua "banquetese" de doutorado, apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Milonopoulos apresenta as perguntas que irão nortear sua pesquisa:  "o que se pode extrair, por exemplo, de um enunciado como 'o sistema digestório é uma ferramenta escultórica da paisagem'? Ou da formulação 'o comer não começa na boca, mas na terra'?". [Potências da fome, potências da vida: Uma cartografia das práticas alimentares expressas no Instagram. São Paulo: 2022, p.61]. 

  10. MASSUMI, Brian. O que os animais nos ensinam sobre política. São Paulo: n-1 edições, 2017. A paixão da apetição que faz mover adiante, como um imperativo de prosseguimento que não responde simplesmente às pressões adaptativas, mas que resiste a apenas conformar-se às restrições ambientais: “o instinto toma a liberdade de inventar as soluções propostas”. Para Deleuze e Guattari, conforme pontua Massumi, o nome dado a essa inventividade imanente à topologia da experiência, como princípio autocondutor e produtor do real é “desejo” [p.42]. 

  11. Idem. Pensar o desejo – ou o apetite – como potência instintiva pré-individual, mas que singularmente atravessa os corpos e, de modo relacional e sistêmico agencia ligações e produz realidade. O desejo não é meu, portanto, mas uma linha de vida que me atravessa e me vincula necessariamente ao meio com o qual estou sempre em devir. O apetite seria, assim, a paixão entusiasmada que insufla os corpos nesse jogo de experimentações de formas de vida, sempre em devir com o ambiente. Haraway chamará essas ligações que emaranham vidas de "simpoiésis" [2023].

  12. FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019.

  13. MARX, K; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo editorial, 2007, p.33: "Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, [...] uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos.

  14. HARAWAY, D. Ficar com o problema. Fazer parentes no Chthuluceno. São Paulo: N-1 Edições, 2023.

  15. Reproduzo um fragmento da citação do texto Planeta doente, de Guy Debord, a partir do qual Viveiros de Castro tece seu colóquio: "Os mestres da sociedade são obrigados agora a falar da poluição, para a combater (porque eles vivem, afinal, no mesmo planeta que nós; eis o único sentido em que podemos admitir que o desenvolvimento do capitalismo realizou efetivamente uma certa fusão das classes) e para a dissimular: porque a simples verdade dos incômodos e riscos presentes basta para constituir um imenso fator de revolta, uma exigência materialista dos explorados, tão vital quanto foi a luta dos proletários do século XIX pela possibilidade de comer".

  16. K. Le Guin, U. A teoria das sacolas da ficção. (Título original em inglês: The Carrier Bag Theory of Fiction, 1986). Tradução de Eduarda N. Camargo, 2020.

  17. "Logo que o trabalho começa a ser distribuído, cada um passa a ter um campo de atividade exclusivo e determinado, que lhe é imposto e ao qual não pode escapar; o indivíduo é caçador, pescador, pastor ou crítico, e assim deve permanecer se não quiser perder seu meio de vida – ao passo que, na sociedade comunista, onde cada um não tem um campo de atividade exclusivo, mas pode aperfeiçoar-se em todos os ramos que lhe agradam, a sociedade regula a produção geral e me confere, assim, a possibilidade de hoje fazer isto, amanhã aquilo, de caçar pela manhã, pescar à tarde, à noite dedicar-me à criação de gado, criticar após o jantar, exatamente de acordo com a minha vontade, sem que eu jamais me torne caçador, pescador, pastor ou crítico. Esse fixar-se da atividade social, essa consolidação de nosso próprio produto num poder objetivo situado acima de nós, que foge ao nosso controle, que contraria nossas expectativas e aniquila nossas conjeturas, é um dos principais momentos no desenvolvimento histórico até aqui realizado. [Marx, K; Engels, F., 2007, p.37].

  18. WOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Nova Fronteira, 2019. Inútil tentar extrair uma única citação dessa obra que situe o ponto que desejo trazer, posto que o livro é inteiramente pertinente para o que tento esboçar neste ensaio. Wolf expõe, em mínimas nuances situadas na experiência cotidiana dos corpos de seu tempo, as razões pelas quais ela afirma que para uma mulher poder exercer o ofício de escritora é necessário dispor das condições materiais adequadas: ter algum dinheiro, não ter filhos e, com sorte, ter um marido benevolente que permita as "excentricidades" de sua esposa. Caberia, no entanto, investigar também que tipo de escrita produzem os corpos femininos que se dedicam a trabalhos subalternos para obter um parco sustento, além dos serviços domésticos com os filhos (quando mãe solteiras) e com um marido (pobre e não benevolente). "Talvez nós tenhamos de começar a atribuir valor aos saberes específicos desses corpos que fazem esses trabalhos", sugeriu Silvia Federici durante uma fala aberta proferida em 2019, na Ocupação 9 de Julho, do Movimento dos Sem-Teto do Centro. O que pensam os corpos que sentem fome, cansaço e falta de tempo para pensar. sentir e escrever?

  19. Comunicação pessoal.


Referências:

COCCIA, Emanuelle. A vida da planta - uma metafísica da mistura. Florianópolis: Ed. Cultura e Barbárie, 2018.

___________________A virada vegetal. São Paulo: n-1 edições, 2018.

FAVRE, Regina. Do corpo ao livro. São Paulo: Ed. Summus, 2021.

FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019.

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nathalia leter | mestranda em arte educação pela UNESP, produtora de conteúdo, artista-performática produzindo um modo de vida rural no vale do paraíba - SP e conduzindo processos de pesquisa-criação em artes visuais.

contato: nathalia.leter@gmail.com

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