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Disposições para uma ativação dos possíveis. Cuidados para acolher o Azul profundo como berçário especulativo de mundos

  • Foto do escritor: Sebastian Wiedemann
    Sebastian Wiedemann
  • 21 de mai. de 2024
  • 35 min de leitura

por Sebastian Wiedemann



Publicado originalmente na Revista ClimaCom, Coexistências e Cocriações | Pesquisa – Artigo | ano 8, no. 20, 2021. Disponível em: http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/disposicoes-para-uma-ativacao/


 

RESUMO: A escrita neste texto avança como um gesto de desaceleração, para se deter e pensar as disposições necessárias para uma ativação dos possíveis na fabulação e cenário especulativo Azul profundo, projeto indisciplinar de pesquisa-criação que se diz gesto de resistência, de experimentação e cultivo de responsividades em meio ao mundo devastado e em ruínas que vivemos. Uma série de proposições de cuidado, que dizem também da aposta por um vitalismo como pragmatismo experimental e especulativo, onde hospitalidade e acolhimento são condições para que o(s) mundo(s) como cocriação e coexistência possam seguir sendo afirmados.

PALAVRAS-CHAVE: Gestos. Possível. Cuidado.


Dispositions for an activation of the possible. Care to embrace the Deep Blue as a speculative birthplace of worlds


ABSTRACT: The writing in this text moves forward as a gesture of slow down, to pause and think about the necessary dispositions for an activation of the possible in the speculative scenario and fabulation Deep Blue, an indisciplinary research-creation project that claims to be a gesture of resistance, of experimentation and cultivation of response-ability in the midst of the devastated and ruined world we live in. A series of care propositions, which also speak of the commitment to a vitalism as experimental and speculative pragmatism, where hospitality and welcoming are conditions for the world(s) as co-creation and co-existence to continue being affirmed.

KEYWORDS: Gestures. Possible. Care.

 

“Somos os filhos do mar que tem perdido o sentido da água... E estamos unidos à terra pelo fundo”

Edmond Tabes


“Importa que mundos criam mundos”

Donna Haraway


“Assim que se tiver feito alguma coisa, a questão é sair. Trata-se de ficar lá, e sair ao mesmo tempo.”

Gilles Deleuze


Céu estrelado, Início da noite, Azul infinito sobre os ombros.

No caminho uma asa me encontra, Azul destino, Pétala, caminho, a sigo, Uma metamorfose, Pétala de um encontro desmedido.


Imagens capturadas do filme Deep Blue, de S. Wiedemann


Existir é fazer existir (mas sempre desde uma jurisprudência). E de momento, mais do que dar um contorno, ao caso, à jurisprudência que temos chamado de Azul profundo, e que sempre se diz fugitiva e avança como linha desviante; o que aparece como necessidade é tornar notável as disposições que a afirmam como espaço e personagem imaginante, onde uma ativação dos possíveis toma incessantemente lugar. Isto é, queremos responder a um chamado que clama que afirmar modos de existência é afirmar suas condições de existência enquanto existem. Em outras palavras, esboçar uma série de cuidados para acolher o Azul profundo como um berçário especulativo de mundos.


Disposições como dobras pedagógicas ativadoras de co-existências e co-criações, de processos simbiogenéticos que favoreçam o coabitar e cocompor do Azul profundo como uma atmosfera de confiança onde aprendizagens mais do que humanas possam ser coconspiradas. Em última instância, uma série de disposições para aprender e relembrar que nada vive só, que tudo vive em estado aberto de cocomposição como instância germinativa de futuridades. Portanto, sempre se pensa em companhia e entrelaçadamente.


*

Um dia acordei no Azul profundo, esse dia tudo se fez cinema, tudo se fez dobrar e desdobrar Azul profundo. Talvez o que se segue é a tentativa de não terminar de acordar e fazer durar o sonhar, de fazê-lo sempre inacabado. Um pluriverso imaginal onde somos operadores anônimos, onde somos refeitos e rarefeitos uma e outra vez como espectros. Nesse acordar e devir em vertigem, se dizer só cineasta apresenta uma instigante insuficiência. É-se cineasta, mas não se para de devir. Não se para de ser cineasta por outros meios, pois cada meio não para de abrir o cineasta. Contudo, nunca se deixa de ser cineasta e de fazer cinema. Um dia acordei no Azul profundo e desde então tudo é cinema, como o que é lido aqui. Mas agora o que se lê, e se desprende dos espectros, é que somos pensamento cinematográfico, que somos praticantes de modos de experiência cinematográficos como secreções que são emanadas através de materialidades diversas, não só nas audiovisualidades como o filme, mas também nas textualidades, como o que povoa estas páginas. Gestos poéticos, gestos experimentais que vão para além das fronteiras que o pensamento moderno gosta impor, que habitam uma zona de indeterminação entre arte e filosofia e que insistem em fazer cinema, mesmo quando este acontece por outros meios. Escrever, falar, filmar são modos de expressão do mesmo campo problemático e composicional. Como liberar novos ritmos na matéria ao mesmo tempo abrindo o humano como gesto de resistência aos tempos catastróficos que temos que viver? Como as práticas expandidas de pensamento cinematográfico (ao escrever e filmar), como os modos de experiência cinematográficos podem instaurar novos corpos e matrizes perceptivas, assim como percepções mais do que humanas? Um dia acordei no Azul profundo e o embate contra as lógicas hilemórficas, dicotômicas e humanas, demasiado humanas, que sufocam a vida e seus modos de existência, não podia ser mais adiado, assim como o fato de que tudo é cinema. Abismar-se vertigem Azul profundo.

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Dar vazão à generosidade da vida. Fazer da escrita e da pesquisa-criação a proliferação de espaços de acolhimento e cuidado para que modos de existência possam ser ditos, exprimidos, instaurados... para que através do experimental como a dimensão acontecimental da experiência, possamos fazer do problema uma condição coletiva de contra-feitiços afetivos. Poderia ter se chamado de outra maneira, mas só foi no Azul profundo que um estilo como fuga rítmica e musical, emergiu para levar tudo a seu limite, pois não esqueçamos que nosso sangue tem mais em comum com as águas do mar do que pensamos1. Levamos oceanos dentro e, por mais que se passe pela terra, no fundo nunca temos deixado de morar nas profundezas marinhas. Tão é assim que, como os nômades do mar da Indonésia, acreditamos que para cada recém-nascido há um irmão gêmeo na forma de um polvo2. Seja como for, o que nos cabe é cuidar e devir atmosferas criativas e difrativas para a vida, sempre redobrando a aposta de fazer variar as matrizes perceptivas. Azul profundo, conglomerado de afetos oceânicos, como cor da imanência, onde um vitalismo como pragmatismo experimental e especulativo é afirmado.


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Azul profundo, cinema especulativo e performativo. Vertov dirá Kino-Olho, nos diremos kino- madologia como etologia poética, como experiência radical do pensamento. Azul profundo um ciclo de gestos menores e vitalistas, um ciclo de gestos de emergência, de fazer nascer que por multiplicidades se perguntam como, através de um pensamento-cinema heterogêneo, uma tonalidade afetiva pode se conjugar de infinitas maneiras e em infinitas direções. Azul profundo, uma investigação-criação e critica imanente, assim como uma experimentação sensível e poética de alguns modos de experiência cinematográficos na passagem por diferentes meios como aprendizagem mais do que humana. A sinopse deste filme poderia muito bem ser: Como conjugar o verbo azular?


Esta tonalidade afetiva, como quase-causa intervalar, como território intensivo de frágil contorno a ser explorado, esgotado e experimentado na variação dos gestos que lhe dão vida. Gestos que acontecem no deslizamento de superfícies imaginais, como ocasiões onde a percepção entra em situação de liminaridade. Azul profundo se perguntando pelo que ainda não é e pode ser, pelo que é indeterminado e pode começar a ganhar curvatura; perguntando-se por essa passagem onde as coisas nascem antes que por seu desenvolvimento. Esta tonalidade afetiva, um ambiente favorável para a nascença. Um berçário para a emergência do novo, para processos genéticos inorgânicos sempre inacabados e em deslizamento por entre superfícies de um plano misto do pensamento.


Azul profundo que pode existir em ato na superfície do filme, mas cujas condições de possibilidade e existência devem ser defendidas e instauradas através da superfície das textualidades. A vida e os modos de existência devem emergir, mas cuidar das suas condições de possibilidade e existência tem igual importância. Parte de cuidar do Azul profundo é manter aberta sua atmosfera existencial e relacional em um movimento de recusa de tentar definir o que pode ser, pois a questão é sempre o que pode devir. Fragmento e montagem. Pensamento-cinema de múltiplas entradas não lineares. Ecologia de práticas cinematográficas. Operação cosmogenética para manter o pluriverso aberto. Ser canal, ser passagem para novos mundos.


Azul Profundo, uma tonalidade afetiva, uma qualidade polimorfa, mas, sobretudo, uma fabulação e cenário especulativo que de modo radical nos abisma em outrem perpassando o humano e não- humano e alhures. Isto é, uma cor. Desvio como composição. Um infinito entrar no Azul, um constante cair na sua profundeza. Um portal aberto, onde infindáveis devires são desdobrados, onde nós devimos outros, onde o mundo é afirmado como experiência cósmica e cinematográfica.


Nesta fabulação e cenário especulativo um cinema antes de saber Cinema toma lugar como processo de transdução e transição entre superfícies, onde a materialidade do cinema não “é” mas “passa” através. Pois o problema nunca foi a forma-cinema, mas a pergunta pelas operações necessárias para colocar em movimento, para in-formar e de-formar, para fazer mutar o pensamento cinematográfico. Um modo de pensar, cuja eficácia se manifesta em processos de montagem entre imagens e onde a imagem é entendida como força vital, como potencial energético e afetivo que vai para além do visível e audível e que é processo constante de individuação e variação. Nesta fabulação e cenário especulativo o cinema não é matéria estável, mas material vivo inserido em processos de cocriação e coevolução.


Azul profundo, um ciclo de gestos e ações performativas de um cinema cosmomórfico e metamórfico. Azul Profundo, um atractor que move e mantém aberto o pensamento com sua relativa indefinição e dinamismo como o movente do próprio pensar, como processo rizomático de múltiplas intersecções de potências não-antropocêntricas. Emergência, anonimato e fuga criando um plano comum de mutua inclusão por transversal dissolução, o aberto. De-formação, deslizamento, apreensão fugitiva e aberta, inscrição como mínimo de aderência, de contato. Nós, proliferação de perspectivas difusas e moveis do ponto de vista da criação sobre o plano de composição.


Azul profundo, um ciclo de gestos, onde conjugar o verbo azular, inevitavelmente implica conjugar de modos impensados o verbo humanar, pois agora estamos na imanência e devir de ecologias azuis e azulantes. Aqui cada gesto apreende a língua da situação que o acolhe. Aqui cada gesto se diz ocasião ilocalizável, mas que pulsa num nó espectral e fugitivo de uma superfície singular do pensamento. Quer dizer, pertencendo a esse-algum-outro mundo por vir azulante, cada gesto é ao mesmo tempo local e ilocalizável por mais que deixe rastos nos lindes deste mundo.


*



Dos gestos:


Pensar e compor com gestos e como gesto. Erin Manning (2016) nos dirá que os gestos menores não se definem por sua escala ou extensão, mas por agirem intensivamente a partir de uma chave menor e que, por sua vez, articula a possibilidade de novas experiências. Eles não são algo já estabilizado ou dado a priori, eles são aptidão para gerar ativações sempre orientadas ao processo, em cujas atualizações se transforma o campo das relações. Eles nos instigam a repensar suposições sobre os modos de agir entre agências humanas e mais do que humanas. Desafiam-nos a pensar desde a margem de maneiras alternativas de ser movido e de se mover pelo mundo para além de uma imagem do pensamento humana demasiado humana que segrega ou aniquila modos de existência que não consegue localizar, mensurar e por tanto colonizar com facilidade, chamem- se estes neurodiversos, extra-modernos ou mais do que humanos.


Na aposta pelos gestos menores haveria uma capacidade de abrir novos modos de experiência e maneiras de expressão. Isto é, de dar lugar a campos de ressonância para abrir a experiência desde dentro dela mesma a suas potenciais variações. Neste sentido, todo gesto menor é experimental porque não define a priori um valor que o oriente, mas pelo contrário se diz problematização de uma tendência normalizadora, ao, a cada vez, re-encenar e performar valores, como tons e qualidades diferenciais e diferenciadoras que mantêm o processo em obras, por mais que possa ser pontoado e fugazmente contornado. É nos gestos e nas suas tendências minoritárias que persiste uma atmosfera anticoagulante para os ritmos, como potência transformadora. Neles nos abrimos a fluxos de contínua variação, onde o indeterminado sempre tem algo de selvagem, mas nem por isso se diz inconsistente.


Talvez eles não tenham a força do que se sustenta em formas preexistentes ou estruturas dadas de métricas conhecidas, mas é ali onde justamente radica a sua força. Eles são pura ritmicidade inventado seu próprio pulso, que é irreproduzível, pois leva a marca do acontecimento. Portanto, cada gesto é profundamente singular e pragmático, mas, ao mesmo tempo, é carga potencial de algo mais, de um mais-que, que o torna especulativo. Em outras palavras, os gestos menores, como o experimental em ato de tendências difusas, desviantes e divergentes, funcionam precariamente como um pragmatismo especulativo mobilizador de valores efêmeros e impermanentes que são a “diferença que faz a diferença”, como diria Gregory Bateson.


Gestos que como tempos-espaço de variação e portanto de invenção de novas conexões e com elas de invenção de novos modos de expressão e existência, chamam-nos a confiar no menor, por mais que este não deixe rastros claros de evidência e no seu lugar distribua dissonâncias e perturbações que nos fazem intuir o acontecimento; por eles, os gestos, se apresentarem como o limite do próprio acontecimento que re-orienta a experiência que até pode passar pelo humano e nele, momentaneamente, se estacionar, mas sem nunca lhe pertencer. É assim como se pode dizer que o gesto menor está em cocomposição com o acontecimento, sendo este último o lugar onde a experiência se atualiza como o tempo da vivacidade em ato da vida em quanto dura. Desta maneira os gestos também poderiam ser entendidos como a abertura para a disjunção através da qual a diferença é produzida no tempo dessa vivacidade em ato da vida, que sempre é mais do que humana e que acontece “nos interstícios da experiência numa ecologia de práticas. Sendo que desde o ponto de vista de uma ecologia de práticas, é urgente afastar-se da noção de que é o agente humano, o sujeito intencional, volitivo, quem determina o que vem a ser. É urgente abandonar (...) a ampla crença de que existe uma independência de pensamento e ser atribuível acima de tudo ao humano” (Manning, 2016, p. 3).


O gesto é emanação afetiva que conecta corpos, é operador de conexão que faz variar a percepção, como a maneira de nos orientarmos em relação ao mundo e que sempre é um ato de atravessar e se deixar atravessar. Assim, cultivar gestos e alimentar perspectivas entrelaçadas entre práticas que sempre se dizem corporais e em ecologia ou que ainda podem ser pensadas como ecosomáticas (Bardet, 2019). Pensar com e como gesto, é se recusar ao isolamento das componentes, é nutrir e se perder em meio a uma matilha de pensamento que é simultaneamente estilo, técnica, corpo, espírito... Uma matilha que aposta nas continuidades emaranhadas que fazem despencar os binarismos habituais. Gesto, então, como o ponto de vista desde o qual pode tomar lugar uma percepção conjugante, que respeita a coabitação de componentes que não deveriam ser separadas. “Nesse sentido os gestos são modos de relação mais do que uma mera forma corporal” (Bardet, 2019, p. 91), onde pensar é conceber uma dobra, não como figura, mas justamente como gesto. Gesto-dobra introduzindo o impensado no pensamento. E onde “pensar é um gesto, o gesto do fora que se dobra e força um pensamento” (Bardet, 2019, p. 91), nunca como re-flexão mas como difração produtiva e de relação recíproca ao interior de uma ecologia.


O Azul profundo, uma escrita ecosomática acontecendo em meio à insistência de gestos que não saciam seu apetite por compor ciclos de proliferação da vida. Ou, para melhor dizer, a posta em ação de uma ecologia de práticas que inevitavelmente implica uma ecologia dos gestos, onde aprendemos que tudo se mistura na experiência como potência constelativa e onde não há lugar para a vontade de propriedade, caraterística do humano, que avança sob o princípio da extração e do estocar de algo que foi violentado por ter sido arrebatado de sua ecologia singular. Assim, dar atenção aos gestos, é não perder de vista o processo de construção de um comum e a performatividade expansiva e variável de um “nós” em constante re(des)composição. Cultivar gestos, como quem cultiva a arte de prestar atenção (Stengers, 2015), como quem ganha intimidade com as maneiras de compor e de fazer funcionar as relações, sempre locais mais ilocalizáveis, postas em jogo. Modos de montar, de ensamblar não sintético, mas que dão lugar a continuidades heterogêneas, a pluralidades ontológicas comunicantes, que abraçam a diferença. Azul profundo, uma ecosomática do pensamento, uma série de gestos mais do que humanos como arranjos relacionais não lineares e de efeitos recíprocos.



Da educação:


O campo de possibilidades trans-específico que é a educação, como hospitalidade acolhedora de jurisprudências impensadas do pensamento favoráveis para o exercício de cultivar e desdobrar gestos, como disposições construtivistas, no sentido que resistem a qualquer hierarquia de conhecimento e exploram a pluralidade ontológica que se coloca em jogo parcial e localmente e onde o que nasce, nasce sempre em comunidade e ecologia. Toda uma brincadeira criativa, como quando se é um mestre-construtor de Lego é se sabe muito bem que cada peça está na imanência com as outras sem serem equivalentes, por justamente funcionarem como diagramas diferenciadores em ecologia contendo cargas potenciais postas à prova num pragmatismo especulativo, onde o que é construído se diz processualidade sem forma última e avança graças à consistência de suas conexões e montagens.


Um pensamento diagramático que por nascer em comunidade e ecologia, não perde o corpo de vista e deve procurar sempre se dizer condição de possibilidade para outros corpos singulares que mais do que responderem ao chamado de um povo por vir, se dispõem compostagem para naturezas por vir. Não repondo uma natureza que falta, mas reinventando o próprio conceito que até então temos de natureza (Debaise, 2017; Viveiros de Castro, 2018). Tarefa esta de uma aventura do pensamento que se nutre de aprendizagens mais do que humanas que começam a povoar uma certa educação e que dão passo a alter-economias afetivas e a invenção não de formações, mas de práticas fluidas e em constante renovação que não pressupõem horizontes. Escutar então o apetite dos corpos e promover que eles inventem o valor do gosto daquilo que os nutre e afirma existencialmente. Em outras palavras, cultivar uma escuta dérmica, de contato, de ontágio, um corpo a corpo... E para que exista um corpo a corpo tem que se compor um comum de vulnerabilidade, fragilidade, exposição e incertezas... um risco, uma vertigem compartilhada de quem sabe que o corpo está sempre por se fazer. Uma simetria que escapa ao perigo das abstrações do macro e do micro e se faz meso, se faz meio e pelo meio. Pois como nos lembra Isabelle Stengers (2009) mais do que micro ou macropolíticas o que precisamos são mesopolíticas que sempre são do corpo a corpo, que sempre distribuem a potência transdutivamente.


Talvez estas sejam as lembranças de futuro de uma universidade por vir. Uma, e aqui pensando com Ursula K. Le Guin, que se diz menos heroica e prometeica, pois não pretende conquistar (outro nome para a formação) e ao suspender tal vontade, também suspende seu avesso. Isto é o trágico, o apocalíptico. Uma universidade por vir, que funcione muito mais como um espaço- tempo de variação, como uma grande “sacola transportadora” que já se diz gesto de gestos, e que seria o modo de mobilizar as aprendizagens evitando “o modo lineal, progressivo, o modo flecha- (assassina)-do-tempo do tecno-herorico” (Le Guin, 2020, p. 15). Uma universidade que ao funcionar em chave menor, como ventre nômade, abre a possibilidade de contar outras histórias e com elas de dar lugar a novas entre-humanidades, a novos processos de coevolução.


A história heroica dos assassinos de mamutes que nos engoliu, e também engoliu o planeta, parece que esta por terminar. E, talvez, com ela, também a possibilidade de contar outras histórias. Uma educação e universidade por vir, talvez, sejam o lugar para reescrever esse último capítulo que se faz chamar Antropoceno, assim como o lugar para seguir escrevendo o primeiro capítulo de uma nova era, o Chthuluceno [3] (Haraway, 2016). O Azul profundo, uma tentativa na arte de contar histórias prestando atenção e ficando com o problema, de fazer continuar a “sacola transportadora” que deve ser reinventada a cada vez e que são as aprendizagens que guardam, recolhem, e juntam afetos como sementes de futuridade.


Dos possíveis:


“A filosofia não pode excluir nada”, nos lembra Whitehead (1966, p. 2) e, nesse sentido, falamos aqui de uma filosofia que se diz estrangeira à “cosmologia dos modernos” que se ergue numa vontade de localização discriminável que permitiria quantificar e manipular (Debaise, 2017), como operação de purificação que funda princípios por fora dos quais supostamente não haveria condições de existência. Uma armadilha, que nos seus procedimentos de exclusão, abre bifurcações (da natureza) que desertificam modos de existência, dando lugar a falsos problemas. Isto é, a binarismos, quando do que se trata é de afirmar que estamos no mesmo barco (Debaise, 2017) e que implica que acolhamos constrições pragmáticas.


A experiência cria constrições e é a experiência quem também nos força a pensar, sendo que ser pragmático, desde a perspectiva do empirismo radical de James (2003), implicaria pensar só com aquilo que foi diretamente experimentado. Isto é, pensar sem sair da experiência pura com o mundo, pois ao sair dela não fazemos outra coisa que desqualificar, por estarmos cedendo a nos orientarmos por um princípio de juízo externo à própria experiência e que teria a vontade de domesticar a multiplicidade em categorias. Desviar-se da localização discriminável e estar em ato na experiência desde uma localidade singular ilocalizável. Dali que todo pensamento seja absolutamente localizado, mas sem localização definida, enraizando-se sempre na situação da qual emerge e que lhe dá sentido. Deleuze (1997) dirá pensar pelo meio. Isto é, pensar sem um princípio critico de uma razão que arrogantemente se acha suficiente e quer isolar criando casos autossuficientes. Coisa que não existe, quando partimos da ideia de que a conectividade é a condição de todas as coisas e as abstrações não podem perder de vista este fato. Assim, pensar com tudo o que implica uma experiência em suas dobras, seria o primeiro passo para o cuidado e ativação dos possíveis e, portanto, do Azul profundo.


Não se trata aqui de uma questão epistemológica, mas sim ontológica. Abandonar a pergunta todo-poderosa dos modernos “que temos direito ou condição de saber?”, e avançar na experiência com a pergunta “que sabemos?”. Em outras palavras abandonar o regime de uma certa soberania à qual estaríamos subjugados, pois locais à experiência não teríamos porque pedir autorização a algo externo a ela. Em todo caso, só nos caberia inventar modos de saber mais, isto é, de abrir outros possíveis. Fazer então do pensamento um gesto especulativo, que o colocaria “sub o signo de um compromisso por e para algo possível que trata de se ativar, de ser perceptível no presente” (Debaise; Stengers, 2015, p. 4) Algo que aconteceria por justamente intensificarmos a fricção com a experiência.



Não excluir nada, não cair na tentação das bifurcações, das falsas eleições que escolhem isto ou aquilo, em vez de acolher isto e aquilo e aquilo outro e aquilo mais... O e...e...e... de Deleuze. Não negligenciar a diversidade do mundo. Desta maneira, o Azul profundo como “pensamento especulativo nos convida a explorar modos de existência em seu próprio ambiente, em seu modo de ter sucesso, em suas demandas imanentes” (Debaise; Stengers, 2017, p. 15). Pois, como nos lembra Souriau, “cada modo é um arte de existir em si mesmo” (2014, p. 132) e nos coloca a questão de fazer importar, de fazer com que as coisas importem, de nos perguntarmos ética e politicamente pela coexistência das multiplicidades de zonas de importância, humana e mais do que humana em uma determinada situação. Em outras palavras, salvaguardar estas condições é cuidar dos possíveis, é se abrir a uma responsividade, ou como Haraway dirá, a uma “response- ability”, como a capacidade de ser responsável por uma ação ou uma ideia para aqueles, para quem a ação ou ideia terá consequências. Depois de tudo, o pragmatismo não é mais do que a arte das consequências, onde o que importa ou se diz importante não é privilegio do humano. Em todo caso, desde uma perspectiva não antropocêntrica, o humano como operador dentro de uma realidade especulativa, não seria o senhor do valor e do que importa, mas sim um intensificar destas características nunca atribuíveis ao par sujeito/objeto. [4]


Dispor-se para ativar os possíveis, para fazer do Azul profundo um berçário especulativo de mundos é então se debruçar sobre a pluralidade de modos de importância que fazem parte da mesma realidade em que participamos; sendo que o importante nunca pode ser reduzido a algo já dado. É algo que insiste nos devires, nos “poderia ser” implicados na situação. E fazer da situação algo importante, é intensificar o sentido dos possíveis que esta abriga e que pedem outras maneiras de existir. Toda uma exploração e proliferação de possíveis trajetórias e intensificações que reside nos interstícios da situação, ali onde as virtualidades fervilham. É nos interstícios e intervalos que a vida pulsa, como potência de algo ainda por ser vivido. É no entre, que as coisas acontecem. Talvez dali emerja nossa propensão por um pensamento cinematográfico que justamente se dedica a cuidar dos intervalos e interstícios e que em um última instância faz intervalar a vida.


Falamos então de uma ecologia dos interstícios, como aquilo que constituiria a kino-madologia radical onde o Azul profundo se faz berçário vazando contágios e onde a vida é “o nome da originalidade e não da tradição” (Whitehead, 1978, p. 104), é função produtora de novidade, qualidade vacante para o que esta por vir (Debaise, 2013). Nesse sentido, a questão pragmática nunca seria se perguntar “o que é a vida?”, mas sim como podemos persistir nela, como podemos fazê-la durar e nessa duração nos perguntarmos pelo que ela é capaz. Perguntas que fazem com que nos comprometamos com os possíveis, resistindo sempre ao provável ao nos instalarmos no especulativo, onde o speculator, observa, vigia, cultiva os signos de mudança que emergem da e na situação, abrindo-se por sua vez ao que pode ser importante nela, que sempre expõe uma ética de se os virtuais em jogo potenciam ou não a situação.


Neste cuidado dos devires como uma tarefa especulativa e experimental, isto é, de criar possíveis, implica-se sempre um processo de instauração onde se faz possível os possíveis, como uma luta contra a probabilidade, contra as formas de sequestro das futuridades que transpõem categorias do passado no futuro que lhes outorgariam o poder de ter a razão. Nesta resistência os gestos especulativos se fazem gestos idiotas no sentido de Deleuze, pois relentam e desaceleram quando outros aceleram, já que sabem que há algo mais importante, mais urgente do que estar certo e ter a razão ou de não se sentir enganado que é o maior medo dos modernos. Os gestos especulativos, plurais por definição, só têm a verdade do relativo, a verdade de algo sempre localizado mas ilocalizável e acontecem e são performados não por uma vontade pessoal, mas por algo que nos força a pensar e a estar à altura da situação, onde como praticantes de ecologias de práticas nos sentimos na obrigação de responder às virtualidades tornadas apenas perceptíveis pelo modo singular como estamos implicados na situação.




Algo nos forçou a ir ao encontro do Azul profundo, a escutar as suas virtualidades, desde uma chave menor por não querermos pensar em nome de, mas por aliarmos os gestos especulativos, em nosso caso uma fabulação especulativa localizada e singular, com a arte da responsividade [response-ability] que fazem de tudo um berçário na medida em que se afirme como locação dinâmica de proposições, de disparações de possibilidades em um mundo sem fundações, em um mundo perigoso, mas ao mesmo tempo empolgante para a vida. Nesse mundo a escrita não é inocente, pois desde uma perspectiva pragmática se diz um acréscimo ao mundo, um lugar pelo qual o mundo se pensa a si mesmo como diria James (2003) e por onde se inventam modos de participar nele, pois a maneira e o estilo como uma ideia, uma possibilidade são expressas, é o modo como elas de fato são, uma vez que diz de um modo de fazer existir (Savransky; Pinho, 2020). Nesse mundo pluralista sempre está em jogo uma poética (do pensamento) que não ignora os ritmos que as virtualidades propõem e instigam; pensa-se com elas. Isto é, a escrita se faz lugar de encontro, se faz dobra-membrana para a vida que não para de experimentar e de se perguntar do que é capaz a realidade (no plural) e o que as consequências dessa performance como “realismo pluralista” (Savransky; Pinho, 2020) torna possível. Uma das consequências claras, por exemplo, no caso do Azul profundo é a possibilidade de pensar uma pedagogia radical dos processos de criação.


Nesta experimentação, como nos lembra Haraway “nós nunca fomos humanos” (Haraway; Gane, 2006), na medida em que não existe tal coisa como o humano separado das multiplicidades mais do que humanas. A situação em jogo é sempre de coexistência é coabitação, e pragmaticamente nos demanda algo que os modernos têm perdido sistematicamente. Isto é, a confiança no mundo. Nesse sentido Savransky, pensa a figura de Descartes como “um homem paranoico que perdeu seu rumo e que tem perdido completo contato com o mundo” (2020, p. 15). Assim, ativar os possíveis além de ser um gesto de cuidado, é também um gesto de cultivar confiança para em meio a delírios afirmativos acolhermos outros mundos nesse mundo sempre em processo e sem finalização, cujas fronteiras são sempre porosas. Cultivar essa confiança também poderia ser pensado como uma descolonização do plural para evitar o solipsismo (Savransky; Pinho, 2020) e dar lugar a uma atmosfera e berçário, onde o problemático possa prosperar como um modo de existência que se diz força generativa que impregna mundos e pensamentos com diferenças e que não pode ser irredutível ao subjetivo, metodológico ou epistemológico. Por este motivo, o problemático, ou para melhor dizer o problemático pluralista pede uma arte das metamorfoses capaz de engendrar processos de criação, invenção e transformação, onde corpos, práticas, pensamentos, mundos são feito e desfeitos, são refeitos e rarefeitos.


Como já é nítido, dispor-se a ativar os possíveis, ensina-nos que os modos de existência não preexistem às suas relações e por tanto são sempre uma forma de pensamento com cuidado (Puig de la Bellacasa, 2017). Falamos sempre de uma ontologia relacional que exige cuidado e que ao sermos participes dela afeta o modo como cuidamos, pois as relações não só implicam cuidado, mas o cuidado é, por si, relacional. Há uma ressonância constitutiva entre estes termos, onde cuidar se diz tudo o que fazemos para manter, continuar e reparar o mundo no qual estamos implicados. Azul profundo, todo um gesto de pensar com cuidado entrelaçamentos que fazem sustentável a possibilidade de fazer durar modos de existência interdependentes, onde o nutriente é sempre a heterogeneidade. Portanto é em última instância uma ética do cuidado a que torna possível o Azul profundo como berçário especulativo de mundos. Ela é a sua condição para em meio às vulnerabilidades perseverar por entre emaranhados mais do que humanos onde incessantes aprendizagens acontecem como gestos de prestar atenção e se tornar responsivo aos afetos em jogo, para não estarmos condenados a mera ação de sobrevivência. É preciso, cuidar e prestar atenção para que a mais-valia de vida (Massumi, 2018) aflore dos e nos interstícios e intervalos.


Também é importante salientar que o Azul profundo de algum modo emerge em meio a humores não muito distantes dos que Donna Haraway propõe nas suas “Histórias de Camille: crianças da compostagem” (Haraway, 2016). O Azul profundo como fabulação especulativa também se propõe a criar parentescos impensados. No entanto, não desde uma perspectiva aditiva (ser progenitor), mas sim subtrativa e complementar (devir-cuidador). O humano, se faz desmoronamento, se desmancha no oceano pré-individual que é o Azul profundo e se faz força que cuida. Uma criação de parentesco como a que criam as parteiras como as crianças que ajudam a nascer, onde se afirma uma pluri-maternagem. Isto é, a criança tem várias mães, pois mesmo tendo vindo à vida desde um único ventre orgânico, ela foi gestada em uma pluralidade de ventres especulativos da comunidade. Por isso, como nos lembram as parteiras afrodescendentes do Pacífico colombiano, quando se nasce com uma parteira se nasce em comunidade (Portela Guarín, 2016); nós diremos em ecologia.


Este viés da fabulação e cenário especulativo que é o Azul profundo insiste no chamado que faz Anna Tsing a aprendermos as artes de viver em um mundo devastado e em ruínas (2017), onde nunca se trata de fabular utopias, mas sim de acolher virtualidades localizadas mas ilocalizáveis para dar um giro nas nossas maneiras de pensar e semear o germe de futuros vivíveis. É assim, como simpoieticamente, devimos hospitalidade para que parentescos possam ser gerados, como devires com outros modos de existência companheiros na criação de novas “coreografias ontológicas” (PTQK, 2019). Danças que sempre devem ocorrer com cuidado, atenção, tato, e onde na ausência de a prioris tateamos difrativamente o momento em que uma disparação acontecimental possa nos tomar por surpresa e faça de nos algo mais (do que humano). Danças coletivas de mútuas disponibilidades sintonizadas, onde escutas atentas, radicais e cuidadosas nos abrem a tempos de confluências e novas confianças no(s) mundo(s).


Um aqui e agora radical e enraizado, Chthuluceno, que por sua vez acolhe o Azul profundo, esse cenário e fabulação especulativa que não para de nos arrastar nas suas tendências aquosas e marinhas, sendo que estes entornos e meios costumam ser especialmente favoráveis para a especulação, mas também para a proliferação de berçários. O estanho, desconhecido e misterioso do abissal e do profundo dos oceanos, como a potência imaginante que nos faz sentir uma forte proximidade com as forças chthonicas, que orientam os modos como somos chamados a re- inventar a confiança (neste mundo) que da lugar aos possíveis. Mesma confiança que, por exemplo, a eclosão de novos modos de existência pode sentir nos atóis do Pacífico e que não para de ressoar em nós, quando pensamos o Azul profundo como um berçário especulativo de mundo.



Do encontro entre modos de pensamento:


Azul profundo, experimentação e cultivo de gestos que se diz prática especulativa e cosmopoética que a seu passo destila devires pedagógicos e transfilosóficos constelados por heterogêneas materialidades do pensamento e da experiência. Interferências e encruzilhadas na procura de acontecimentos cristalinos. Como quem se faz a uma “sacola transportadora” (Le Guin, 2020) e vai catando dos conceitos cores e de tudo indisciplinadamente extrai afetos como matéria de composição. Uma aventura do pensamento, uma aventura cinematográfica e composicional [5], que a seu passo faz da língua um lugar aberrante de conectividades, expressividades e problematizações estranhas, monstruosas e selvagens, que intensificam o fora [6]. Vertiginosa eto-ecologia azulante de procedimentos variáveis, de involuções intensivas, de re(des)composições de órgãos multivalentes e ritmos sinestésicos. Sempre por um fio e nos umbrais de arranjos e vizinhanças frágeis, cuidar do campo infinito de variação e sem categorias que é o Azul profundo. Na lama, em meio à viscosidade de argilas cinematográficas e filosóficas o inominável do Azul profundo compostando tudo. Palavras-conceitos devindo cores-passarinhos. Passarinhos filosóficos mergulhando performaticamente no caoide Azul, que draga imagens do pensamento, que da desrazão entre o conceito e a sensação renova percepções e com elas disposições politicas.


Criação de uma tradição do delírio como caminho, onde conceitos são coloridos e ganham sabores e humores musicais diferenciadores. Pois é dos afetos que os problemas se erguem e é com os afetos que os problemas, como susto e estupor momentâneo do e no pensamento, são devorados e são feitos outrem como condição renovadora de vida. Cirandas carinhosas entre conceitos e afetos. Danças criadoras entre eles como aceleradores de partículas chicotando, penetrando, invadindo, arrepiando o um e o outro, o um no outro para que um ritmo novo seja despontado. No meio das lambidas, mutações e transformações acontecendo para estar à altura do problema a ser pensado. Filosofar poeticamente, enquanto poéticas se fazem filosofantes. O próprio problema, o próprio Azul profundo, pedindo a subversão do um pelo outro, exigindo que ambos estejam se emaranhando, convivendo e coabitando, pois o problema da instauração e do fazer nascer é eminentemente um problema estético e sensível (Coccia, 2020; Souriau, 2014), que inevitavelmente implica pedagogias radicais, como a possibilidade de renovar hábitos nos modos de estarmos juntos entre humanos e mais do que humanos. Avizinhar-se de intercessores, pois se compartilha o mesmo terreno e a mesma casa arruinada e inundada a céu aberto. Entrecruzamentos, onde o gigante problemático que é o Azul profundo como oceano afetivo, pede para os conceitos devirem invertebrados sensíveis como os polvos. O drama de avançar em meio a trans-escritas (Prado, 2018), pois não se limita o apetite pelo ritmo e o diferencial que pode aparecer aqui e acola. Travessia, na qual operadores imaginantes, isto é que cuidam da imagem como aquilo que sempre esta por vir, escoam-se e cintilam como singularidades de coalescência fluente interessada em indagar e se apropriar de potenciais aliados no pensamento.


Um jogo, uma dança, uma brincadeira de brilhos e rebrilhos. Cintilações filosóficas no sensível e um sensível que faz cintilar o filosófico. Trovoadas que reciprocamente se implicam e complicam. Disparações ativadas pelo cintilar do um no outro, enquanto o um devem precursor sombrio do outro. Uma conversa: trovão que cai, passarinho filosófico que canta em resposta, canto que por sua vez dispara uma energia potencial ativadora de afloramentos, de ressurgências oceânicas, abrindo um berçário para que o polvo fecundado pelo passarinho possa desovar ovos cósmicos, ovos cosmogéneticos que nas suas dobras contem membranas conceituais e sensíveis que mantem em pé o Azul profundo como cintilação vital e existencial de um pensamento-mundo em ato.


Se a filosofia é o limite do pensar desde o ponto de vista dos conceitos; desde o ponto de vista da criação encarnado por humusidades (Haraway, 2016) de uma tradição delirante de ancestralidades tentaculares e cefalopodiantes que cultivam o des-limite, poderia se dizer que do que se trata no Azul profundo é de experimentar múltiplas perspectivas para que o pensamento não seja limitado e o mundo e o pluriverso continuem cintilando.


Aprender a cintilar, apreender-se cintilação do e no pensamento, de algum modo não deixa ser uma aprendizagem cinematográfica de meios e superfícies variáveis. Uma pedagogia do cintilar como devir-cineasta de todo mundo, onde forçados pela vertigem aprende-se a estar à altura da alquimia exercida por modos de experiência cinematográficos. Isto é, de ocasiões de pensamento, onde avançamos sempre de modo tateante e rastejante em direção a uma disrupção na percepção que desmonte uma certa lógica de hábito e recognição presente nela. Em outras palavras, que mantenha o mundo em divergência e em obras, em vertigem, por estarmos experimentando o experimental que implica uma cosmo-plasticidade, onde como praticantes de uma ecologia de práticas cultivamos encontros inter/multiespecíficos como fazem os herboristas com suas plantas e as bruxas com seus feitiços. Algo assim como um coabitar Ujjayi [7], como um coabitar de uma respiração oceânica da vertigem. Todo um compartilhar, que como prática e ética faz do devir-cineasta uma coaprendizagem onde a respiração nos ensina a compormos atmosferas com o mundo acolhendo a sua vertigem constituinte.


Sentir que estamos coabitando o útero do mundo que se esconde no Azul profundo, como sonho coletivo de coletividades feitas de muitos e com muitos, que nos chamam ao cuidado e atenção de águas férteis para a emergência de uma outra humanidade que se diz meio entre meios como puro fluir marinho de mundos. Delicada hospitalidade de quem a potência do outro do outro quer abraçar, de quem feito humusidades não é mais do que um catalizador de escuta dos ritmos embriológicos das imagens, sempre por vir. Isto é, onde nos afirmamos como canais para a aprendizagem vital e rítmica das próprias imagens, onde nos abrimos a escutar uma certa disposição e propensão que elas já carregam. Algo assim como, à par de aprendizagens mais do que humanas, afirmar um cinema mais do que humano que intensifica de modo material relações com o mundo.



Dar o tempo às imagens, pois delas desde sempre é. Elas, na sua condição cristalina, escutam secretamente o tempo do acontecimento em cujas dobras habita o povo intersticial e intervalar da luz e dos sussurros (como ontologia relacional de coabitabilidades simétricas). Então, só nos cabe aprender a não violentar, a cuidar e por vezes curar a arquitetura na qual elas duram e se esgotam sem se consumar. Quer dizer, cuidar das imagens, não é outra coisa que apre(e)nder devires- cineasta para que elas possam cuidar de suas próprias aprendizagens, sem nunca termos a arrogante e abominável vontade de subjugá-las e subalternizá-las querendo fazer da tarefa delas, uma tarefa nossa ou a nosso serviço. Devir-cineasta que ao cuidar das imagens, cuida que a imagem do pensamento sempre seja outra. Dali a iminência e o chamado ético de se fazer a uma pedagogia do cintilar, que, em meio a riscos compartilhados, abra em todo mundo um devir- cineasta e que por sua vez se diga devir-cineasta do mundo. Uma contingência necessária, onde o ponto de vista da criação não para de cintilar, pois não para de se deslocar fervilhantemente entre infindáveis dimensões que por sua vez fazem divergir incessantemente as suas direções. Um avançar tentacular e expansivo pela vastidão do Azul profundo.


Nesta jornada, a risco de falhar e errar, a pedagogia do cintilar, como a aprendizagem de novos hábitos que façam faiscar o pensamento, inevitavelmente nos coloca numa situação de farfalhar e de errância como a afirmação de uma posição ilocalizável ou de estrangeria que sempre se renova. Viajantes no pensamento, só nos cabe devir hospitalidade e generosidade de encontros efêmeros, mantendo sempre em aberto a pergunta por como continuar. Mesma pergunta que faz com que as imagens sempre sejam aquilo que esta por vir e que nas suas dobras sejam tudo menos clausura para o acontecimento. Há de se ganhar uma intimidade com o mundo e o pensamento só atingível entre estrangeiros, por compartilharem uma profunda familiaridade com isso estranho e misterioso que constitui e faz férteis as conexões e co-composições a cada vez e localmente, e onde não somos mais do que posições relacionais povoáveis por impensadas forças que nos fazem holobiontes e simbiontes especulativos desdobrando exercícios xenológicos entre mundos. Alegre monstruosidade do pensamento, onde “toda vida se constitui xenologicamente, como espécie e mundo” (Valentim, 2018, p. 361).


Fiapos que somos, costurando frágeis constelações existenciais, onde como curandeiros- educadores cuidamos do ritmo; e da pedagogia do cintilar, desdobramos uma pedagogia do movimento real (e não da impressão de movimento) que acontece na medida em que xenologicamente nos afirmamos como desaparecer de uma imagem plena de nos mesmos (nossa Humanidade) para que o mundo possa aparecer, a-par-com-nós-ser em meio a humusidades. Algo assim como não se exilar do mundo por justamente ser estrangeiro. Estrangereidade vulnerável que ao se dizer cinematográfica é entrar imersivo no mundo que a cada vez deve inventar e especular as suas entradas em cujas dobradiças se encontram as virtualidades operadoras da diferença.


Um modo de pensar hibridante e em companhia, que cocompõe percepções no umbral, mas também umbrais da percepção ou ainda faz da percepção um umbral. Um pensamento brincalhão que como um balanço vitalista e metamórfico movido pelo murmurinho de um precursor sóbrio, cria pontes e renova mitologias de encontro, ou ainda em meio a gestos mito-cosmo-simbio- geneticos inventa um cinema dos pluriversos, como tendências, propensões e potências sem qualquer tipo de essência. Dali que possa se dizer pelos mais diversos meios e por outros meios, onde as materialidades por onde passa o singularizam sem fixa-lo. Uma lagarta cinematográfica orientando o pensamento. Um pensar desde os umbrais se balançando no fio de metamorfose (Olandi, 2018), no limite dinâmico de nossa humanidade em desmoronamento. O cinema dos pluriversos pensando com lagartas que já não são mais a crisalida que ainda é e a borboleta que será.


Pensamento que se escoa na passagem de modos de experiência cinematográficos que se deixam habitar pelo ponto de vista da criação, que só entende de continuidades no descontinuo que resguardem a vida como estalo intersticial. Estalo que não se apega às formas ou limites orgânicos de precária individuação. Estalo-ponto-de-vista que sempre é devoração de devoração, mas também devoção de processo irrestrito de vasta continuação. Processo que pode nascer na folha e seguir na asa. Zonas limítrofes de intrépida proliferação. Folha que a lagarta engole. Gole de vida que borboleta intui. Lagarta que se abandona, que é esquecimento de si e perseverança de tudo.


Ninguém morre, não há alguém, há só vetores de variação. Folha-resto, lagarta-advento, asa-voo, vida-naranja perto do sol. Cor-vibração. Azul profundo como co-criação.


É assim como no balançar e brincar da trans-escrita que aqui praticamos entre modos de pensamento, entre filosofias e artes de cuidar e curar, que a imagem vai se afirmando como campo vibrátil em propagação, como porosidade que faz passar ressonâncias. Como sonoridade inaudível, que pode se precipitar e contornar nas visualidades. Isto é, percussão contagiante. Teoria da montagem cinematográfica (do pensamento), como teoria das cordas, onde a imagem se instala entre a ondulação cósmica e a percussão da matéria. Ali acontece um cinema de gestos menores como pensamento dos ritmos de imagens-umbral, de imagens-membrana, de imagens- água-viva. Todo um pensamento de imagens ativas e vivas, e por tanto generativas e propositivas, animando uma passagem do estético ao cosmológico, onde temporalidades alienígenas as fazem dançar como multirelacionalidades e poliritmicidades de um cristal que se diz coletividade imanente feita de muitos e com muitos.


Na incompletude constitutiva do entrecruzamento de modos diversos de pensar, quebra-se a ficção de que há um mundo uno e por tanto unificado. Quer dizer, uma cosmopolitica (Stengers, 2018) se dispõe como esteira de ação, onde sempre há uma jurisprudência e uma equivocidade da imagem, que fazem dela um diagrama em movimento, que a cada vez inventa modos fragmentários e incomensuráveis de envelopar o valor por ser experiência e processo (Massumi, 2018). Nesse sentido serão os modos de experiência cinematográficos, quem performem e dramatizem o valor a cada vez, mas, sobretudo, que o relentem e desacelerem para justamente poder outorgar um valor singular que re-valorize os meios por onde a mais-valia de vida prolifere sempre em chave menor e em direção a um comum como compartilhamento de riscos. Uma alter- economia afetiva da transmissão, pois como nos lembra Donna Haraway:


Precisamos de algum modo fazer a transmissão, herdar o problema e inventar condições para o florescimento multiespecífico, não apenas em uma época de guerras humanas e genocídios incessantes, mas em uma época de extinções em massa impulsionadas por humanos e genocídios multiespecíficos que varrem gente e criaturas para o vórtice. Precisamos “ousar’ ‘fazer’ a transmissão; isto é, criar, fabular, para não desesperar. De modo a induzir a transformação, talvez, mas sem a lealdade artificial que se pareceria com um ‘em nome de uma causa’, não importa o quão nobre ela possa ser. (Haraway, 2016, p. 130).



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Notas:

[1] A pesquisa-criação que deu lugar a este texto foi possível graças ao financiamento do CNPq.

[2] Cineasta-pesquisador e filósofo, doutorando em Educação na FE/Unicamp. Mais recentemente publicou o livro “Deep Blue: Future Memories of A Livings Cinematic In-Between” (2019). E-mail: wiedemann.sebastian@gmail.com

[3] No seu texto “O sangue, o mar.” Italo Calvino dirá: “As condições da época em que a vida ainda não havia saído dos oceanos não se transformaram muito para as células do corpo humano, banhadas pela onda primordial que continua escorrendo nas artérias. Nosso sangue, de fato, tem uma composição química parecida com a do mar das origens, de onde as primeiras células vivas e os primeiros seres pluricelulares tiravam oxigênio e outros elementos necessários à vida. Com a evolução de organismos mais complexos, o problema de manter o número máximo de células em contato com o ambiente líquido não pôde mais ser resolvido apenas por meio da expansão da superfície exterior; foram favorecidos os organismos dotados de estruturas ocas dentro das quais a água marinha podia fluir. Mas foi somente com a ramificação dessas cavidades num sistema de circulação sanguínea que a distribuição do oxigênio passou a ser garantida para o conjunto de células, tornando assim possível a vida terrestre. O mar, no qual outrora os seres vivos estavam submersos, está agora encerrado em seus corpos” (Calvino, 2007).

[4] Ver o documentário de Florian Kunert “Oh Brother Octopus” (2017): <https://vimeo.com/439331518>.

[5] Chthuluceno, uma figura poética e filosófica, assim como especulativa; um outro lugar, um outro tempo que foi, ainda é e pode chegar a ser sempre em intimidade com forças chthonicas. Haraway se inspira na aranha Pimoa cthulhu, para a invenção deste termo, que apela a um pensamento tentacular e que de algum modo tem pontos de contato e ressonância com a ideia do aracniano de Deligny (2015). No entanto, sem aqui seguir necessariamente uma continuidade com H. P. Lovecraft, o Chthuluceno abre em nos fortemente devires e modos cefalopodiantes de ficar com o problema. Nesta mesma série e confluência, poderíamos pensar a ideia de ciclo de gestos, como série de tentáculos, como ciclo de gestos tentaculares, onde o tentare implicado no tentaculum se faz presente e dá lugar a ecosomáticas do pensamento como tentativas hápticas, sempre inconclusas de tocar e palpar que re-inventam relacionalidades.

[6] Não seria esta a tarefa de uma estética cosmológica, sendo que o termo cosmológico se refere à função fazedora de mundos das ecologias de práticas que se dispõem coesas entre si e duram mantendo a diferença viva e onde a estética é entendida como o jogo das sensações que perpassam as ecologias de práticas, os modos e meios nos quais elas se implicam? Cf. (Engelmann, 2017).

[7] Mesmo que de modo oblíquo e transversal, na démarche aqui em jogo, sempre insiste um pensamento composicional advindo da música. Sou grato, por exemplo, às ideias do compositor e filósofo Silvio Ferraz, como a da fórmula da reescrita ou do ritornelo, e sua concepção de escuta. Ver: (Ferraz, 2012; 2015). Ainda no modo de se lidar, corpo a corpo, com as materialidades do pensamento e de puxar fios ou singularidades concretas delas para criar novas conexões, montagens e composições, cintilam aqui ideias de compositores como Gérard Grisey e sua concepção musical a partir do diferencial, liminal e transitório (Grisey, 2008), assim como as conexões entre o pensamento musical de Brian Ferneyhough e Deleuze, quando o compositor diz que compor “não é uma questão de fixar a forma, mas de liberar as energias as quais a forma nos fornece. (...) [Entendendo a forma] sempre como um processo transformativo provisório, algo que a todo e qualquer momento está sempre, mesmo que de modo oblíquo e transversal, na démarche aqui em jogo, sempre insiste um pensamento composicional advindo da música. Sou grato, por exemplo, às ideias do compositor e filósofo Silvio Ferraz, como a da fórmula da reescrita ou do ritornelo, e sua concepção de escuta. Ver: (Ferraz, 2012; 2015). Ainda no modo de se lidar, corpo a corpo, com as materialidades do pensamento e de puxar fios ou singularidades concretas delas para criar novas conexões, montagens e composições, cintilam aqui ideias de compositores como Gérard Grisey e sua concepção musical a partir do diferencial, liminal e transitório (Grisey, 2008), assim como as conexões entre o pensamento musical de Brian Ferneyhough e Deleuze, quando o compositor diz que compor “não é uma questão de fixar a forma, mas de liberar as energias as quais a forma nos fornece. (...) [Entendendo a forma] sempre como um processo transformativo provisório, algo que a todo e qualquer momento está sempre se movendo em múltiplas direções” (Ribeiro; Correa; Domenici, 2009, p. 10). Do mesmo modo, nos é muito cara a ideia de escuta profunda da compositora Pauline Oliveros (Oliveros, 2005).

[8] Neste sentido o modo como o pensamento opera no Azul profundo, não estaria muito longe da ideia de pop- filosofia apontada por Deleuze e macerada por Laurent de Sutter em seu livro “O que é a pop-filosofia?” (Sutter, 2020). O elogio da jurisprudência do pensamento, mas, sobretudo, a abertura para um devir-erro da filosofia, como derrota diante de sua vontade moderna de vitória, conquista, colonização, dominação... Whitehead, dirá, não deixar que a filosofia na sua matriz moderna exagere demais nas suas pretensões. Algo assim, como se a pop-filosofia estraçalhasse o domo que quer unificar o mundo e fazê-lo uno com a camisa de força de algum fundamento último. Nesse sentido a pop-filosofia seria uma criação de afetos livres e selvagens. Sutter dirá: “a pop-filosofia é a criação de conceitos de tal modo que dita criação desemboque na saída da criação de conceitos, na constituição de um fora do conceito. (...) Sair do conceito pelo afeto, uma vez que se admite que o afeto e o conceito são uma só e mesma coisa olhada através de dois pontos de vista. (...) A pop-filosofia é o ser-afetado da filosofia” (2020, p. 55–56).

[9] Técnica de respiração lenta utilizada nas práticas de yoga e pranayama. Acredita-se que com ela pode-se apreender vitalidade cósmica do ar e atingir estados de imanência com a consciência-mundo oceânica do cosmos.

 
 
 

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nathalia leter | mestranda em arte educação pela UNESP, produtora de conteúdo, artista-performática produzindo um modo de vida rural no vale do paraíba - SP e conduzindo processos de pesquisa-criação em artes visuais.

contato: nathalia.leter@gmail.com

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